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15/07/2020

Artigo - O grande desafio do transporte público

Sergio Avelleda*

O período pós-pandemia vai colocar à prova um dos elementos vitais das nossas grandes cidades. Os sistemas de transporte público estarão diante de desafios inéditos que colocam em risco a sua própria viabilidade.

transporte freepikA existência das cidades deriva de uma necessidade econômica, social e, também, psíquica: o desejo e a necessidade de conviver e compartilhar. O crescimento das cidades fez aumentar as distâncias e os tempos no espaço criado originalmente para o convívio. Para manter então a possibilidade do elemento que nos levou as cidades – convivência – desenvolveu-se sistemas originalmente simples de mobilidade nos espaços urbanos. O aumento da complexidade do tecido urbano foi elevando também a complexidade dos sistemas de mobilidade – novos modais, integrações, desafios tarifários, mobilidade ativa e motorizada, serviços diferenciados, modalidades compartilhadas, etc.

Além do paralelismo entre complexidade do tecido e urbano e dos sistemas de mobilidade urbana também podemos encontrar linhas paralelas entre riqueza e acesso e pobreza e falta de acesso. Estudo recente, publicado pela WRI[1], mostra a diferença dos índices de acessibilidade em Johanesburgo e Cidade do México. Ali se vê como o acesso a empregos e oportunidades tem perfil completamente diferente em regiões de alta e de baixa renda. A população de baixa renda, em geral, para acessar as oportunidades de renda e trabalho dependem dos sistemas de transporte publico.

Antes da crise causada pelo Covid-19 já observávamos uma dificuldade dos sistemas de transporte público encontrarem fontes de financiamento que lhes dessem fôlego para uma operação de qualidade e, ao mesmo tempo, viabilizasse investimentos para ampliação do tamanho desses sistemas e uma continua melhoria da qualidade. A falta de insumos financeiros provoca uma corrosão na qualidade do serviço o que contribui para a perda de usuários e o agravamento da crise financeira. Ou seja, é um ciclo negativo autofágico.

A crise revelou diversas circunstâncias que limitam um sistema de mobilidade urbana de qualidade, inteligente e resiliente: limitações de fontes de financiamento, baixo nível de governança – especialmente nas áreas metropolitanas, falta de integração, superados modelos de contratação de operadores, desenho urbano que concentra trabalho e renda e espraia moradias, dentre outros.


Para este pequeno e singelo texto vamos focar em um desses elementos: o risco de colapso em razão da falta de fontes de financiamento. As fontes de financiamento dos serviços de transporte público, em geral, se resumem a duas: a tarifa paga pelo usuário e subsídios pagos pelos orçamentos públicos. Quando cobramos tarifas dos usuarios pelo uso do transporte publico estamos afirmando que eles são os beneficiários dos serviços e, devem, portanto, fazer frente aos custos dos serviços.


Quando buscamos recursos nos orçamentos públicos para o financiamentos dos sistemas de transporte público estamos afirmando que a existência desses sistemas promovem um beneficio para além dos seus próprios usuários. Reconhecemos, então, a existência de externalidades positivas geradas pelo uso do transporte publico, de forma a justificar a transferência de recursos gerados pelos pagadores de impostos (nem todos usuários dos serviços de transporte público). Podemos listar os principais benefícios: redução de congestionamento, de emissão de poluentes, de fatalidades no transito, aumento da competitividade e eficiência das cidades, etc.

Contudo, essas duas fontes de financiamento não tem se mostrado suficientes, como se disse acima, para assegurar a prestação de serviço de qualidade. E, repita-se, a falta de um serviço de qualidade agrava a perda de passageiros e condena aqueles que não tem opção ao transporte público a ver diminuídas as suas condições de acessibilidade e a qualidade de vida.

Portanto, urge a elaboracao e implementacao de politicas publicas destinadas a proteger os sistemas de transporte publico, entre elas, a garantia e ampliacao de fontes de financiamento.


As receitas tarifarias tendem a diminuir no período pós-covid. As cidades chinesas que já deixaram as medidas de isolamento social para trás estão a nos ensinar que o número de passageiros transportados deverá ser menor do que antes da epidemia:

 

grafico artigo aveleda


O medo da contaminação explica parte desses números, a redução da atividade econômica explica uma outra parte e o uso do trabalho remoto pode explicar uma terceira parte.

A redução do número de passageiros obrigará a adaptação da oferta dos serviços, o que poderá reduzir parte dos custos variáveis e fixos. Mas haverá uma redução de escala que poderá determinar o aumento do custo por passageiro transportado, gerando ainda maiores déficits. Esses déficits vão elevar a pressão sobre os orçamentos públicos para adoção ou ampliação de subsídios. O problema é que esses orçamentos estarão pressionados por uma série de outras demandas: serviços de saúde, perda de receitas derivadas da crise econômica, desafios habitacionais, programas de estimulo à economia, dentre outros.

Ou seja, não se pode contar com recursos provenientes nem da tarifa, nem de recurso públicos. Se concordamos que os sistemas de transporte público são essenciais e que não podemos permitir o seu colapso, temos, então que buscar outras fontes de financiamento.


Acima, referimos que os sistemas de transporte geram inúmeras externalidades positivas. Isso significa dizer que geram benefícios para outros que não apenas os seus usuários.

Quando decidimos mover-nos em transporte público estamos transcendendo os benefícios para além de nosso próprio entorno. Toda a sociedade se beneficia com a nossa decisão.

O uso do transporte motorizado individual gera externalidades negativas. Se quem decide se mover em carro desfruta dos benefícios do conforto e da privacidade provoca para os seus concidadãos efeitos nefastos: ineficiência energética (mais de uma tonelada para mover 75 kg, em media), alta ocupação do espaço público, congestionamentos, poluição, riscos de fatalidades, dentre outros.


Há, portanto, uma carga de custos suportada por toda a sociedade quando alguém decide se locomover em transporte individual motorizado.


Fica bastante óbvio concluir onde queremos chegar: é tempo das cidades começarem a considerar a implantação de uma nova fonte de financiamento ao transporte público: a implantação de cobrança sobre o uso do transporte individual motorizado, destinando esses recursos ao financiamento da operação e investimentos no transporte público.


Algumas cidades já deram esse passo: Londres e Nova Iorque são os exemplos mais conhecidos. A primeira já com larga experiência e Nova Iorque, que recentemente aprovou, depois de anos discutindo, a implantação de uma taxa para acesso à Manhattan.

Na minha experiência como administrador público vi muitas vezes políticos evitarem essa discussão por um temor da reação dos seus eleitores, usuários de automóveis e motocicletas.
 
Ainda se vê o carro como um bastião da liberdade individual, o que alimenta o temor de se adotar qualquer medida restritiva para o seu uso.


Eu penso, contudo, que a reação negativa da sociedade à adoção de modelos de financiamento do transporte público tendo como fonte o uso do transporte motorizado individual vem, antes de mais nada, pela falta de informação de um elemento essencial.


Quanto a sociedade paga pelo uso do transporte individual motorizado?


Em geral, quando olhamos os orçamentos públicos nas cidades ou estados onde há subsídio ao transporte público, localizamos com extrema facilidade uma linha orcamentária denominada “subsidio ao transporte público”.


São Paulo é uma cidade que desde 2005 paga subsídio como complemento ao quanto é arrecadado pela tarifa. O subsídio garante um modelo de integração tarifária que aumentou significativamente a utilidade e o uso dos sistemas de transporte por ônibus e trens.


Todos sabem em São Paulo quanto se paga de subsídio e a sociedade discute esses valores: se é muito, se é pouco, se esta pressionando ou não as demais despesas que o poder público precisa também suportar.


Contudo, não há nos orçamentos públicos uma rubrica orçamentaria denominada “subsídio ao transporte individual motorizado”. A ausência dessa linha orçamentária cria a sensação que não existe o tal subsídio. Ou seja, que nada custa ao poder público o transporte individual motorizado.


Ora, bem sabemos o quanto isso não é verdade. Milhares de quilômetros de asfalto precisam ser mantidos. Sistemas de engenharia e sinalização precisam funcionar 24 horas por dia. Há uma perda econômica brutal por conta dos congestionamentos. Há despesa com saúde pública decorrente das doenças respiratórias causadas pela poluição. Outras somas vultosas são gastas com feridos e mortos no trânsito. A seguridade social é chamada a indenizar os familiares dos mortos, os feridos e os vitaliciamente inválidos. São várias as despesas suportadas pelo poder publico.

Ocorre, entretanto, que elas estão dispersas ou ocultas em linhas orçamentárias que nada têm a ver com “subsídio ao transporte individual motorizado”. Não existindo a consolidação do número, ele permanece oculto, impedindo o debate sobre se é muito ou pouco, sobre se é justo ou injusto o pagador de imposto que não usa o transporte individual seguir subsidiando o seu uso.


Os orçamentos públicos devem consolidar os valores gastos com o transporte individual motorizado.

Ao meu ver, portanto, o primeiro passo para qualificar a discussão sobre medidas de financiamento do transporte público a partir da cobrança pelo uso de carros e motocicletas, deve ser a consolidação das despesas com o transporte individual motorizado em uma única rubrica orçamentária, de forma a dar visibilidade e transparência a esses gastos.


Sendo visíveis e transparentes será natural a discussão da justiça ou não dos contribuintes suportarem esses valores sem nenhuma contrapartida do usuário do transporte individual (por que exigimos contrapartida do usuário do transporte público – tarifa – e não fazemos o mesmo com o dono do carro?).

Muito mais fácil ficará convencer a sociedade do quão correto é, sob a perspectiva da teoria econômica, estabelecer a cobrança do uso do transporte individual motorizado em favor do financiamento do transporte público.


* diretor da ONG WRI

Nota:
1 - https://www.wri.org/wri-citiesforall/publication/mobility-access-all-expanding-urban-transportation-choices-global-south

 

 

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