Nilva Marcandali
Ritos culturais são significativos para nossas elaborações cognitivas e emocionais. No processo de luto, a pessoa precisa de uma passagem de fases, de um tempo para seu restabelecimento interno e reestruturação mental. “Sempre que se perde alguém querido é preciso enfrentar o processo de luto para sair dele fortalecido e ser capaz de seguir uma vida saudável.” (Bromberg, 1999).
A psiquiatra Kluber-Ross (1926-2004), em seus estudos com pacientes paliativos, identificou cinco fases do luto, que tanto aquele que se encontra nos momentos que antecedem a morte como seus familiares e amigos vivenciam como mecanismo para lidar com essa realidade tão sofrível. São elas: negação; raiva; negociação/barganha; depressão; e aceitação. Hoje, já se sabe que essas fases do luto também são sentidas em todo o processo que envolve uma perda.
Até mesmo durante este momento de pandemia, desde seu início até agora, percebem-se essas fases nos comportamentos sociais. Identificamo-nos com a dor do outro pela projeção dos nossos sofrimentos. Fica mais suportável chorar pela tragédia de alguém do que encarar a própria dor. Essa é uma das razões por que algumas pessoas são tão atraídas por programas de TV que vendem a desgraça alheia e por postagens da internet com assuntos e imagens chocantes. Além disso, quando presencio a morte do outro, é o momento que me sinto tão distante da minha.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Entretanto, devido à urgência de medidas protetivas na quarentena, as nossas habilidades de resiliência, ressignificação e enfrentamento estão voltadas ao modus operandi de sobrevivência. Sabiamente, nossa linguagem intraverbal e padrões de aprendizado cognitivo-comportamental nos protegem de outros estresses que não estão voltados a esse objetivo. Assim, não nos permitem fragilizar com algo que não está sob nosso controle, mesmo que a perda seja de um ente muito próximo. Neste momento, todos os nossos recursos estão voltados para o “salve-se quem puder”. Sem dúvida, após cessar o “estado de alerta”, o sofrimento pela perda virá com mais intensidade.
“A autorização (para sofrer) é um dos elementos mais libertadores para trabalhar com o luto” (Elaine Alves, 2012), porém não nos está sendo permitido, tanto pelas nossas defesas cognitivas quanto pela própria situação social de risco que a Covid-19 impõe.
Normas sociais de prevenção desautorizam velar e sepultar nossos mortos da maneira como precisamos. As famílias não podem consolar umas às outras, pela necessidade de afastamento social. As igrejas e templos estão fechados e não conseguimos “encaminhar as almas” de quem amamos. Não dá tempo para chorar por dias, com pesar, com lembranças e saudades, até que nossa própria alma “fique lavada”.
Além desses rituais concretos e simbólicos, a Psicologia do Estudo da Morte fala da necessidade de velar o corpo, para que a mente se convença da morte. O comportamento de ficar olhando para o morto no caixão convence a mente da morte. Também é importante que se faça um velório longo, para que todas as despedidas sejam feitas; para que amigos e parentes contem suas histórias sobre o falecido(a); e para que se chore de forma autorizada, socialmente, acompanhado e apoiado no sofrimento. Cada um desses ritos ajuda na elaboração do luto.
No meu entendimento, essas duas situações impostas pela pandemia, luto velado e estado de autossobrevivência, provocam essa negação generalizada da realidade de uma grave doença pandêmica. A maioria das pessoas, em diferentes países do mundo, não possui recursos internos para lidar com situações tão novas e inesperadas e quando estão ligadas à possibilidade de morte nossas defesas mentais, cognitivas, não são hábeis para uma adaptação tão urgente como necessário.
Minha orientação é que busquem apoio de profissionais da saúde mental, para se instrumentalizar dessas habilidades que o “novo normal” requisita. Caso não esteja familiarizado com os benefícios que uma psicoterapia pode lhe proporcionar, fale com seu médico de confiança. Conte suas angústias, dúvidas, medos e receba orientações para cuidar da sua saúde física e mental.
Nilva Marcandali, proprietária e psicóloga do Espaço Mente&Corpo NM, é terapeuta cognitivo-comportamental, especialista em Terapia Comportamental pelo Hospital Universitário do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (HU-Ipusp) e em Terapia Cognitivo-comportamental pelo Ambulatório de Ansiedade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (Amban-IPq-HC-FMUSP), com aprimoramento em Luto, Depressão e Prevenção de Suicídio
Excelente artigo!