Francisco Christovam*
O setor dos transportes urbanos de passageiros começa o ano de 2021 com uma certa dose de preocupação e de frustação. Mas, ao mesmo tempo, com uma grande esperança na construção de um ambiente de trabalho mais interessante e propício para todos os agentes envolvidos na produção desses serviços.
É público e notório que a pandemia deixou as empresas operadoras, principalmente aquelas que atuam em cidades de médio e grande portes, numa situação econômico-financeira extremamente delicada. Se ainda existe alguma dúvida sobre as dificuldades enfrentadas por essas empresas, certamente, isso deve ser debitado à ignorância, má-fé, interesses escusos ou absoluto desconhecimento da realidade do setor.
Depois de um enorme esforço feito pelas entidades de classe, que representam os órgãos de gestão e as empresas operadoras que militam nessa área, o Projeto de Lei 3364/2020, que busca garantir o repasse de recursos a Estados, Distrito Federal e Municípios, em caráter emergencial, no montante de R$ 4 bilhões, com o objetivo de assegurar a prestação do serviço de transporte público coletivo de passageiros e de reequilibrar os contratos impactados pelos efeitos da pandemia da Covid-19, foi aprovado pela Câmara Federal e pelo Senado, em agosto e novembro, do ano passado, respectivamente.
Entretanto, argumentos supostamente técnicos apresentados pelo Ministério da Economia levaram o Presidente da República a vetar, na íntegra, a proposta que previa o repasse de R$ 1,2 bilhão para os Estados e Distrito Federal e de R$ 2,8 bilhões para os Municípios, com população superior a 200 mil habitantes. Há um pedido de audiência com o Presidente em curso e o veto ainda pode ser derrubado pelo Congresso Nacional; mas, não será nada fácil reverter essa situação, pelas mais diversas razões de ordem técnica, institucional ou mesmo política.
Dessa forma, as empresas operadoras que estão conseguindo lidar com a crise provocada pela pandemia não devem contar com essa ajuda financeira a curto prazo; porém, devem continuar trabalhando com demandas reduzidas, pressões para a melhoria da qualidade dos serviços e para o cumprimento das exigências sanitárias, restrições tarifárias e orçamentárias e a assunção plena de todos os riscos inerentes ao desequilíbrio entre a oferta e a demanda de passageiros.
Infelizmente, essa é a dura realidade e o grande desafio a ser enfrentado pelas empresas responsáveis pelos deslocamentos da maioria da população das cidades brasileiras, independentemente do tamanho dos municípios, da qualidade dos serviços prestados ou da quantidade e dos motivos das viagens realizadas.
Mas, em paralelo, todos os municípios brasileiros iniciam o ano com novas administrações, sejam elas sob responsabilidade de novos prefeitos ou de prefeitos reeleitos. Nem é preciso lembrar que promessas e compromissos para melhorar o nível dos atendimentos e a qualidade dos serviços oferecidos à população foram feitos com o objetivo principal de angariar votos e, quase sempre, descolados da qualquer estudo técnico ou da preocupação com a exequibilidade das propostas apresentadas. De qualquer forma, na maioria das cidades, muito provavelmente, as novas administrações deverão criar condições propícias à negociação com as empresas operadoras, com vistas à continuidade da prestação dos serviços.
Embora, mais uma vez, as entidades de classe representativas do setor tenham se preocupado com a real situação dos transportes urbanos e produzido um alentado documento intitulado “Guia Eleições 2020 – Como ter um transporte público eficiente, barato e com qualidade na sua cidade”, que poderá servir de orientação para a elaboração dos planos, programas e projetos de mobilidade, quase todos os novos prefeitos terão que enfrentar a difícil tarefa de reorganizar o transporte de passageiros de suas cidades, revendo a relação entre o poder público e as empresas operadoras, bem como renegociando os contratos de concessão, para garantir a prestação dos serviços, conforme as necessidades e as possibilidades de cada localidade.
Nas cidades onde as empresas não conseguiram superar as dificuldades financeiras e tiveram que interromper a operação e devolver os serviços ao poder concedente – de forma amigável ou não – é imprescindível que se façam estudos técnicos que possam embasar um processo licitatório, cujas características devem ser totalmente diferentes daquelas que vêm sendo praticadas, ao longo dos tempos.
Deve-se considerar que uma boa contratação é aquela que consegue atender, concomitantemente, aos interesses do órgão contratante, das empresas operadoras e dos clientes, mais tradicionalmente chamados de usuários. O modelo convencional, onde o poder concedente fica apenas com as funções de contratação, fiscalização dos serviços e aplicação de multas pelo não cumprimento das obrigações contratuais, sem considerar todas as mudanças que aconteceram no setor, nos últimos dois ou três anos, está fadado ao insucesso.
É preciso entender, de uma vez por todas, que o transporte urbano de passageiros é um serviço público, essencial e estratégico, de responsabilidade do Estado, cujo objetivo principal deve ser o desenvolvimento humano e socioeconômico da sociedade, bem como a realização das atividades que garantam o funcionamento das cidades. Em síntese, um dever do Estado que pode e deve contar com as empresas privadas para a sua execução; porém, sem tratá-lo como um negócio, a ser regido por leis de mercado e que pode operar num ambiente concorrencial e desregulamentado.
Nesse sentido, novamente, as entidades de classe que representam as empresas operadoras que atuam no setor já começam a discutir a necessidade de um novo marco legal que possa servir de referência para as novas contratações de serviços de transporte, que se fizerem necessárias ou convenientes.
É por demais sabido que o modelo atual de contratação desses serviços está visivelmente esgotado e carece de uma nova abordagem e regulamentação. Para tanto, à semelhança do que, recentemente, foi realizado na área do saneamento básico, o setor começa a discutir a necessidade de uma consolidação das leis que regem a matéria, ao mesmo tempo em que debate a criação de um marco referencial, para redefinir os papéis do poder concedente e dos prestadores de serviços, a nível nacional, e reorientar a forma de relacionamento entre os entes contratantes e as empresas operadoras, dentre outros aspectos.
Não é mais possível pensar em sistemas de transporte urbano sem a existência de um perfeito entrosamento entre os representantes do poder concedente e das empresas operadoras; sem a definição clara da quantidade e da qualidade dos serviços a serem prestados; sem novos modelos de contrato de concessão, baseados na produção e na qualidade da oferta e não na quantidade de serviços; sem novas fontes de recursos para os investimentos e para o custeio da operação; sem infraestrutura e condições operacionais adequadas; sem a participação dos clientes na definição dos atributos das viagens; sem sistemas de monitoramento e controle da operação da frota; e sem instrumentos adequados de comunicação com os clientes, com a sociedade e com os formadores de opinião.
Em resumo, se de um lado existe uma certa dose de decepção com o nível de preocupação de boa parte das autoridades com a situação econômico-financeira das empresas que atuam no setor e com a continuidade da prestação dos serviços; de outro, o início das novas administrações, a possibilidade do desenvolvimento de um novo ambiente de trabalho e a criação, a médio prazo, de um novo marco legal para os transportes urbanos de passageiros é, no mínimo, alvissareiro.
Assim, sem saber quando terminarão as restrições sociais, econômicas e sanitárias impostas pela pandemia do Covid-19, é preciso superar as adversidades suportadas no ano passado e renovar as esperanças por dias melhores em 2021!
*Francisco Christovam é assessor especial do Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros de São Paulo – SPUrbanuss e, também, membro da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo – FETPESP, da Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP, do Conselho Diretor da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos – NTU, da Confederação Nacional dos Transportes – CNT e dos Conselhos Deliberativo e Consultivo do Instituto de Engenharia.