logo seesp ap 22

 

BannerAssocie se

03/06/2021

Vender Eletrobras em crise hídrica histórica é tiro no escuro, diz engenheiro da UFRJ

Brasil de Fato

A crise hídrica que hoje ocupa as manchetes do país trouxe uma preocupação a mais para o atual árido contexto brasileiro: o risco de racionamento no consumo de energia a médio prazo. A projeção parte da análise da situação em que se encontram os reservatórios do subsistema que concentra 70% da geração hídrica do país.

crise hidrica foto fabio pozzebom ag brCrise hidrica atual é a maior nos últimos 91 anos. Foto Fabio Pozzebom-Agência Brasil

 

 

Na segunda (31/5), por exemplo, segundo dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), esses reservatórios, localizados nas regiões Centro-Oeste e Sudeste, estavam com 32,2% de água. Cinco dias antes, o volume era sensivelmente maior, de 32,5%, enquanto um ano antes o armazenamento estava em 55%. Já é a maior estiagem dos últimos 91 anos.


“E a culpa não é de São Pedro”, conclui o engenheiro e professor do Grupo de Energia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Renato Queiroz. Atual conselheiro do Instituto Ilumina, ele aponta que o cenário brasileiro resulta não só da falta de chuvas nesses lugares, mas também da ausência de um planejamento adequado do País para gerenciar esse tipo de problema ao longo da história.


“Houve uma falha pra se chegar a esta situação de agora. É uma falha que vem há anos, não é só deste governo, mas ele já podia ter alertado pra isso, já podia estar acompanhando. Não vejo atualmente uma estrutura bem coordenada pra levar isso”, avalia o especialista, que também é ex-engenheiro de Furnas, um dos braços da Eletrobras.


Em conversa com o Brasil de Fato a respeito do tema, Queiroz chamou a atenção para diferentes elementos que podem ampliar os riscos para o país em termos de segurança energética, e realçou: a privatização da Eletrobras pode ser um “tiro no escuro”.


Questões relacionadas ao acionamento de termelétricas, ao desmatamento da Amazônia e às mudanças climáticas também integram o rol da conversa com o especialista. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.


O país está vivendo uma crise hídrica de proporções históricas. Alguns especialistas têm dito que não veem risco de racionamento, mas o senhor tem apontado o contrário. Quais exatamente os elementos do cenário que lhe levam a essa projeção?

Renato Queiroz engenheiro UFRJO engenheiro Renato Queiroz. Foto: Reprodução Canal IEEstamos numa situação de acumulação de água nos reservatórios nas usinas brasileiras. Os reservatórios das usinas brasileiras têm os das regiões Sudeste e Centro-Oeste, que são os principais. É a “caixa d’agua” do setor, no jargão do setor. Os níveis deles estão muito baixos, em torno de 35%. Então, já começa a comparar um pouco com 2001, em que tivemos aquele racionamentos.

Estamos no mesmo nível, tivemos uma estiagem muito grande no período úmido, que vai mais ou menos de dezembro a maio. E em abril choveu pouco. Foi um regime úmido não muito favorável. E temos um modelo – as regras que regem o setor elétrico e que foram implantadas nos anos 1990,1995 – de mercado que funcionou, mas que traz problemas e, ao longo dos anos, o país vem sempre se ajustando [a isso].

 

Esse modelo não foi alterado estruturalmente, e aí estamos também com mais esse elemento que tinha no racionamento de 2001. E temos ainda o problema da privatização da Eletrobras. Qual é o problema disso em relação a uma crise dessas?

Quando você sinaliza que vai privatizar uma empresa desse porte, que tem várias empresas controladas, subsidiárias, e com muitas instalações – ela hoje representa 30% da geração e quase 50% da transmissão [de energia] –, normalmente se tem uma estratégia de diminuir a capacidade técnica da empresa ou das empresas, porque a Eletrobras é um conjunto de empresas, e se começa a dar incentivos de aposentadorias, e aí vão perdendo uma capacitação técnica.

E o que é pior: eu vou investindo menos, porque interessa ao investidor comprar uma empresa com menos dívida. Então, na hora em que eu faço uma obra, uma hidrelétrica, por exemplo, eu vou fazer contratos, empréstimos, vou me endividar pra aplicar na minha obra, e isso diminui o valor da minha empresa. Então, geralmente eu tenho uma estratégia de diminuição de investimentos.

 

A estatal vem sofrendo problemas de caixa ou lucratividade?


A Eletrobras, segundo sabemos, tem R$ 14 bilhões em caixa. Ela deu valores significativos de dividendos ao seu acionista majoritário, que é o governo. Em muitas ocasiões, o que você faz? Muitas vezes, o próprio governo diz “reinveste esses dividendos em obras”, tem uma decisão gerencial ali, enfim. Mas eu não faço isso.

Então, eu paguei dividendos, investi menos, e o que acontece? Esse é mais um elemento de quando você está num regime de privatização. Você segura os investimentos da empresa. Isso tudo está igual a 2001 – estou respondendo sobre por que acho que temos sinalização de racionamento.


E por que “sinalização”? Porque pode chover muito em agosto, setembro, eu posso ter ali alguma variável que modifica [o cenário]. Naquela época, o meu consumo de energia era maior, era crescente, porque hoje nós estamos nesta crise econômica. Mas o setor elétrico pode ser o gargalo da economia [no futuro].

O que nós esperamos? Vai ter vacina, eu posso voltar a funcionar, posso melhorar a economia, etc., aí tenho uma perspectiva de melhorar e economia, mas eu [setor elétrico] posso ser um gargalo.

E aí, o que eu acho? Pode até não ter racionamento, se as minhas térmicas entrarem todas em operação e sustentarem ainda esse consumo, mas há uma perspectiva de crescimento desse consumo no segundo semestre. As pessoas estão se mexendo, mesmo com problemas de não se ter convivência social por causa da covid. Os comércios, a indústria estão tentando se mexer, gerar dinheiro.

Tenho perspectiva de no segundo semestre dar uma melhoradinha, e aí isso aumenta o consumo. Se eu chegar ao verão com temperaturas altas, é inevitável se ter gastos, com aumento de ar-condicionado, indústrias que precisam manter o ar, serviços, shoppings, etc., aumentando o consumo de ar. Então, acho que tem uma tendência também de aumentar o consumo e eu tenho perspectiva viável de um racionamento.


As térmicas que vão sobrar pra entrar nisso são caríssimas. O negócio é que o governo pode querer pesar, já está cobrando bandeira 2, e aí eu vou ter que racionar. Certamente, é mais um elemento ruim, porque já estamos numa crise sanitária, não tem vacinas, as vacinas não chegaram como o povo quer. As pesquisas estão dizendo que o povo quer vacina porque está com medo e já se chegou à conclusão de que a vacina evita muito a gravidade [da covid].


Então, tem isso, tem a crise economia e, se tiver uma crise de apagão, um racionamento... Muitas vezes, a distribuidora diz “não estou com energia”, então, corta a carga, aí [vem] o apagão. Por exemplo, o bairro X, bairro tal ficam todos sem luz. É uma falha técnica? O cara pode ter feito uma programação de não botar energia, então, tem os apagões localizados, o que nada mais é que um racionamento.


Há especialistas dizendo que pode haver um boom no uso de termelétricas no Brasil. Que tipo de atenção. Nos últimos dias, foi noticiado que o governo federal vai contratar a energia mais cara das termelétricas por causa da piora da estiagem. O que se vê adiante?


De saída, tem que ser entendido o seguinte: uma construção de uma usina termelétrica não vai resolver esse problema agora. São uns três anos pra botar uma térmica em pé. A questão do Brasil é a seguinte: essa direção é um caminho na contramão das políticas energéticas.


O grande diferencial que o Estado brasileiro montou ao longo dos anos, dos governos, através das estatais, sobretudo da Eletrobras, com o seu conjunto de empresas, foi estabelecer uma matriz energética limpa, e mais: com segurança energética.


Eu trabalhei em Furnas muitos anos, no planejamento, e a premissa básica é você ser independente energicamente, é você não ficar dependendo de algo importado. É uma premissa como se fosse do brasileiro engenheiro do setor elétrico. Quando tivemos, lá na ditadura, uma crise do petróleo – porque nós não produzíamos petróleo naquela época –, tínhamos um programa de etanol do álcool porque o governo disse “não podemos ficar dependentes disso”.


Mas e o gás? Bom, hoje eu tenho gás importado, que é o gás natural liquefeito (GNL), que coloco num navio, trago pra cá, se usa uma tecnologia e vira líquido. As térmicas hoje usam gás importado. Aí vem a pergunta: e o gás do pré-sal? É um processo pro qual eu faço um outro caminho do meu planejamento energético.

Então, se eu encher de térmicas, ele vai na contramão também porque hoje se faz um planejamento, em todos os países, pensando em segurança energética e em ter energia pro povo, pra indústria, pra sociedade, com a mudança climática.

Agora, eu tenho mudança climática, então, tenho que pensar na emissão. Se for encher de térmicas, vai ter fóssil. Então, é uma contramão das políticas energéticas defendidas pelos organismos que estudam o planejamento energético no mundo para os países.

Mas aí você diz “e eu não posso ter térmica?”. Pode ter uma base térmica, mas não fazer um programa de térmicas pra isso.  Tem que ter outra saída – renováveis, pequenas centrais hidrelétricas, eu posso aumentar [energia] solar, colocar nos reservatórios placas solares. Então, é incentivar os telhados solares, e não colocar regras que desestimulem.

Confira a íntegra da entrevista no Brasil de Fato.




Lido 1120 vezes
Gostou deste conteúdo? Compartilhe e comente:
Adicionar comentário

Receba o SEESP Notícias *

agenda