Olimpio Alvares*
A instigante – e reveladora – contradição dos maiores emissores de carbono do planeta frente ao seu compromisso de urgente descarbonização
A China domina absoluta a cadeia internacional de produção de painéis solares, turbinas eólicas e dos gigantescos clusters de baterias necessários para suprir a necessidade de back-up das alternativas renováveis intermitentes – ou seja, quando não há chuva, sol e/ou vento. Embora venha implantando regularmente as alternativas energéticas no âmbito doméstico, e ainda forneça esses equipamentos para todo planeta, esse país vem construindo cerca 104 usinas a carvão mineral por ano (duas por semana), que podem durar até cinco décadas; além disso, instalam em ritmo desenfreado grandes quantidades de usinas a gás de origem fóssil e plantas nucleares.
Em princípio, parece que há uma profunda contradição das políticas energéticas e econômicas chinesas, relativamente à sua meta de neutralidade de carbono (Net-Zero) em 2060; o mundo aguarda ansioso a quebra do silêncio de Greta Thumberg com seu antológico “How dare you!”.
Segundo os estudos de modelagem do Painel Internacional de Mudanças Climáticas (IPCC), o aumento de temperatura da superfície da Terra já é de 1,1oC, em relação à temperatura média da superfície da Terra no período pré-industrial (1850-1900), linha de base da temperatura antes da interferência humana. Faltaria, portanto, somente 0,4oC para que o aumento de 1,5 graus Celsius considerado na 21ª Conferência das Partes de Paris (COP-21) de 2015 como “limite de segurança”, seja atingido. Se nenhuma providência coletiva drástica de restrição e redução global imediata das emissões de carbono for tomada, a ultrapassagem desse limite pode ocorrer provavelmente nas próximas duas ou três décadas, aumentando o risco de violação do limite crítico de 2 graus para o ano de 2.100, conforme estabelecido na COP-21.
De fato: “A temperatura global da superfície continuará a aumentar até meados deste século em todos os cenários modelados pelos cientistas do IPCC. O limite de aquecimento de 1,5°C será excedido em breve, a não ser que as reduções das emissões ocorram nas próximas décadas” – este é um dos destaques do `Sumário para Tomadores de Decisão’ publicado pelo IPCC em 2021. Segundo o relatório, no ritmo atual das emissões – 40 bilhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2) por ano – esse limite será ultrapassado provavelmente por volta de 2040. As emissões globais de CO2 teriam que ser reduzidas em cerca de 7% ao ano até 2050, para que o limite de segurança de 1,5 graus não seja ultrapassado, conforme informou em Seminário realizado pela Fapesp em 2021, o Prof. Paulo Artaxo, cientista do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e representante brasileiro no IPCC.
Os compromissos dos países de atribuírem prioridade máxima, em plena crise (econômica, geopolítica e energética) mundial, bem como de continuamente (durante décadas) mobilizarem, em escala planetária concertada, quantidades absurdas de recursos tecnológicos, naturais (minérios) e financeiros - algo sem precedentes na história da humanidade – para atendimento dos compromissos do Net-Zero, pressupõem que vem ocorrendo um forte abraço coletivo global à crença numa tragédia climática iminente, disparada pelo gatilho do aumento da temperatura média da superfície da Terra, acima do limite de segurança de 1,5 graus.
Se é esse mesmo o rumo atual das grandes decisões de Estado em muitos países, a pergunta que emerge na mente de observadores minimamente atentos, das discussões que cercam a chamada transição energética, é a seguinte: por que razão os chineses não abraçaram com todo vigor as políticas de mitigação das emissões, em fase com as recomendações do IPCC? Afinal, em pleno “Movimento Net-Zero”, a expansão da geração de energia fóssil deve ser urgentemente banida e substituída por energias consideradas renováveis. É exatamente isso que tenta fazer a Alemanha (embora ainda sem muito sucesso), a Califórnia e outros países aderentes à urgente neutralidade climática a qualquer custo.
Os números mostram que o desafio coletivo global parece ser, sob diversos aspectos, sobre-humano. Recente estudo de referência da consultoria McKinsey indica, que atingir Net-Zero significa que os maiores emissores de CO2 teriam que investir cerca de 9,2 trilhões de dólares por ano de 2021 até 2050 para atingir a almejada neutralidade de carbono. É provável, que certos países superdotados de recursos naturais e/ou tecnológicos já estão movendo mundos e fundos para ajustarem sua influência nos mercados estrangeiros para atrair para si um grande naco desses recursos, via exportação das alternativas renováveis de geração elétrica, baterias, veículos de uso individual dependentes de altos subsídios etc.
O estudo da McKinsey também mostra, que entre os diversos países com metas Net-Zero estão incluídos aqueles cuja maioria da população encontra-se ameaçada pela pobreza e escassez crônica de recursos de toda sorte, inclusive dos meios básicos para o desenvolvimento de resiliência climática, como por ex. disponibilidade de energia barata para conforto térmico, permitir deslocamentos etc. Nesses países, segundo esse estudo, os investimentos representariam de 10 a 20% do Produto Interno Bruto, todos os anos, nos próximos 27 anos, o que pode eventualmente representar - isso sim e sem dúvidas - uma tragédia humanitária, muito antes do ano 2.100.
Para essas Nações em desenvolvimento, cuja população somada é da ordem de alguns bilhões de habitantes, a descarbonização açodada pode mesmo representar um cenário econômico catastrófico, bem antes de o “relógio climático” bater no 1,5oC - limite de segurança sobrevalorizado (segundo recente declaração pública do atual presidente do IPCC) de uma suposta catástrofe climática.
Aliás, o mundo assistiu há pouco o recente caso concreto de cenário econômico distópico no Sri Lanka, induzido pela implementação de medidas restritivas na produção agrícola, relacionadas à “sustentabilidade” e proteção do clima. O mesmo fenômeno poderia estar ocorrendo hoje entre agricultores holandeses, se não fosse sua resiliência econômica. Entretanto – e isso surpreende – até agora, depois de 40 anos de intermináveis discussões, poucos estudiosos de políticas públicas, economia e clima vem colocando esse tema perturbador no centro focal das discussões relacionadas às mudanças climáticas e Net-Zero - realizadas predominantemente entre investidores, instituições filantrópicas, burocratas, intelectuais, militância climática e jovens elites acadêmicas de países ricos.
Bem, de volta ao oriente, a oferta imediata de equipamentos chineses mais acessíveis de geração elétrica renovável para atendimento dos mercados cativos internacionais, além de prejudicar a maximização do suprimento da imensa demanda doméstica de energia da própria China (suplementada atualmente por grandes quantidades de energia nova suja), pode induzir no mercado internacional atrasos danosos na área da mineração e no beneficiamento responsável dos minérios; essas atividades seriam feitas no ocidente como de costume, de forma ética, regulamentada e fiscalizada, sem maiores prejuízos ao ambiente, e sem trabalho semiescravo, que inclui crianças - como amplamente noticiado, sendo objeto atualmente de preocupação da Anistia Internacional e outras agências de defesa dos direitos humanos. Ademais, dada a facilidade de importação de produtos e componentes da China, esses atrasos induzidos também podem ocorrer no campo da pesquisa e desenvolvimento local de soluções inovadoras no ocidente, visando a um enfrentamento competitivo e equilibrado do desafio global da descarbonização.Ocorre, que esse comportamento resistente da China em priorizar a maximização da sua própria demanda interna por alternativas energéticas renováveis, dá margem a muitas perguntas, como por exemplo:
- Seria um sintoma de descrédito em relação à urgência das políticas de mitigação e à iminente catástrofe generalizada?
- Estariam colocando em dúvida os resultados da modelagem do IPCC?
- Há ceticismo da China em relação à eficácia da estratégia de ação global coletiva de mitigação imediata, e uma aposta na incapacidade dos grandes emissores de carbono de atingirem suas metas individuais Net Zero? Pode-se supor, portanto, que tenham internamente concluído, de modo discreto, que a meta global Net-Zero seria inatingível?
- Estariam reavaliando as estimativas de disponibilidade e capacidade de processamento de minérios (e de energia fóssil) para construção de um sistema global de geração, distribuição e uso de elétrica livre de emissões de carbono?
- Haveria um excesso de confiança em sua própria capacidade de implementar medidas de adaptação ao aumento de temperatura da Terra?
- Seria essa resistência, forte indicação da intrigante decisão deliberada pela priorização dos ganhos econômicos, com a maior exportação de equipamentos de geração de energia renovável (guerra comercial), em que pesem a exposição patente da incoerência política e os prejuízos à sua própria estratégia Net-Zero?
Estas são algumas questões cruciais ainda não suficientemente esclarecidas, que balizarão a corrida pela neutralidade de carbono. Está mais que evidente, que o problema das mudanças climáticas e suas soluções tem sido impropriamente simplificados. Nos próximos anos, uma das mais instigantes tarefas das cabeças ajuizadas da sociedade será refletir com cautela e responsabilidade sobre esses mistérios. Trata-se de afinar os processos de decisão sob profundas incertezas e riscos.
Ressalte-se finalmente, que o cientista escocês James Skea, novo presidente do IPCC, declarou ao jornal Der Spiegel, que em nada ajuda propagar a ideia irresponsável de que o aumento de 1,5 graus Celsius seria uma ameaça existencial; é certo que não será uma tragédia humanitária, mas sim, que vamos enfrentar um planeta mais perigoso. Skea alerta – em tempo – para o grave risco de choque e paralisia frente a um mundo supostamente sem futuro, e apela por uma abordagem positiva e equilibrada no debate das mudanças climáticas.
Nossos jovens agradecerão.
*Olimpio Alvares é consultor em emissões e transporte sustentável, engenheiro mecânico formado na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo em 1981, especializou-se no Japão e Suécia em emissões e transporte sustentável, é fundador e coordenador da Comissão de Meio Ambiente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), membro do Comitê do Clima e Ecoeconomia e do Comitê de Substituição de Frota (Comfrota), da Prefeitura de São Paulo; é ex-gerente de desenvolvimento de programas de controle de emissões veiculares da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), onde atuou por 26 anos.