Olimpio Alvares*
“A ignorância inerente da ciência em relação aos seus próprios compromissos e suposições limitantes configura-se como um problema apenas quando compromissos externos são construídos sobre ela como se tais limitações intrínsecas à ciência não existissem”. (Wynne - 1992)
A questão das incertezas remanescentes sobre o ritmo e urgência das mudanças do clima; os investimentos anuais trilionários supostamente necessários à materialização da transição energética, conforme parece estar sendo concebida neste momento; as diferenças conjunturais e estruturais de cada economia nos diferentes países e culturas; as tecnologias de propulsão veicular em constante evolução e quebra de paradigmas; os interesses comerciais e disputas geopolíticas; as guerras em curso; o paradoxo do apartheid energético e a necessidade do desenvolvimento econômico nos países pobres e em desenvolvimento - dependente de energia abundante e barata; a escassez aguda de recursos minerais e as diversas mazelas na sua cadeia de extração, produção, comercialização, uso, reuso, reciclagem e descarte; o papel da energia nuclear e dos biocombustíveis; ... são muitos os aspectos intimamente relacionados com o aquecimento global.
Cada um deles tem dinâmica própria e permitem apenas a estudiosos mais atentos fazerem reflexões em cortes; assim, aos poucos, vai-se formando o complexo mosaico que compõe uma visão contextual, enriquecida a cada nova análise mais apurada desse caleidoscópio chamado Mudança Climática. É um pouco dessa experiência que pretendo compartilhar com os pacientes leitores deste artigo.
Incertezas metodológicas - relação de causalidade entre emissões antrópicas de gases do efeito estufa e temperatura média da Terra
Há na literatura disponível na internet abundantes referências científicas a aspectos metodológicos que parecem, em princípio, não estarem pacificados na ciência climática. Há também muita pressão política sobre os resultados da pesquisa científica, e grande interesse de agentes da mídia (e outros particularmente interessados) em gerar medo; isso tem gerado ansiedade coletiva, especialmente na população mais jovem e mentalmente desprotegida.
Sem ter a mínima condição técnica de fazer uma avaliação dos parâmetros que compõem os modelos climáticos - objeto da pesquisa de mais de 30 anos de milhares de cientistas do topo da academia, esses não serão discutidos aqui. Entretanto, há uma série de incertezas de mais fácil compreensão - embora também polêmicas - que são familiares ao universo dos mortais engenheiros, como este que ora propõe-se ao risco de descrevê-las.
Mineração e transição energética
Peça chave da transição energética, a mineração é atividade potencialmente destrutiva do meio ambiente e da saúde de trabalhadores e comunidades locais; localmente repelido por países desenvolvidos, esse setor deveria ser rigorosamente regulado e fiscalizado - porém, em muitos casos, dentro e fora do Brasil, como bem sabemos, não é.
Entretanto, na fervura das discussões sobre o aquecimento global de origem parcialmente antrópica (em proporção ainda incerta), surgem ousadas decisões de massivos investimentos governamentais emergenciais (incluindo subsídios e isenções fiscais) e privados, que tendem a fluir aos trilhões nas próximas décadas. No artigo que escrevi para o Sindicato dos Engenheiros - SEESP intitulado Mistério Climático, esses investimentos são citados em maior detalhe.
Na era dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável - ODS da Organização das Nações Unidas - ONU, os cenários futuros de descarbonização da geração e uso de energia só devem ser construídos mediante firmes diretrizes em que todas as mazelas ambientais, trabalhistas e sociais do setor de mineração sejam solucionadas - ou, no mínimo, fortemente mitigadas.
Se houver atividade mineradora e minério suficientes a um preço acessível (há especialistas do setor que questionam fortemente essa possibilidade), o volume global de mineração aumentará exponencialmente nas próximas décadas devido à enorme demanda de minérios (metais e terras raras) necessários para produção de baterias, painéis solares, turbinas eólicas, motores elétricos, condutores e outros componentes necessários à energia motriz de uma civilização em processo gradual de descarbonização.
Muitos equipamentos que compõem a plataforma física de geração e uso de energia da transição, segundo a concepção que por enquanto parece configurar senso comum em fóruns internacionais especializados (a saber, geração fotovoltaica e eólica - intermitentes - com back-up de baterias, e transporte predominantemente eletrificado), tem vida operacional inconvenientemente curta (15 a 30 anos), e requerem sucateamento e reposição frequentes.
A China domina grandes fatias dos mercados de mineração, beneficiamento, produção e exportação dos recursos minerais, e manufatura dos respectivos produtos acabados. Esse domínio se deve especialmente à abundância geográfica local desses metais e à baixa rejeição pela atividade mineradora, em que pese seus impactos. Isso levou o País à intensa atuação extrativista que é restringida nos países desenvolvidos pelo potencial de danos permanentes ao meio ambiente e pela carga excessiva de regulação. A pesquisa avançada e o desenvolvimento tecnológico, industrial e comercial no setor das energias renováveis também contribuíram com esse protagonismo mundial. Os chineses também atuam há décadas com desenvoltura no setor de mineração em países em desenvolvimento, especialmente na África, na Nigeria, Namíbia, Gana e Congo. Sua atuação na América do Sul no Peru, Argentina, Chile e Bolívia tem gerado preocupação entre os países desenvolvidos ocidentais, por motivos óbvios.
Mais vantagens competitivas da China
Além disso, a China pratica internamente maior carga diária e anual de trabalho e salários com menos encargos trabalhistas que os países desenvolvidos, bem como maior flexibilidade na legislação ambiental. Os chineses ainda contam com abundantes incentivos e subsídios do governo às empresas que produzem e exportam matéria prima e produtos críticos para a descarbonização do setor energético e transportes. Todos esses fatores os qualificam para competirem no mercado internacional da transição energética, resultando numa condição competitiva singular, que implica ampla vantagem comercial estratégica e geopolítica.
De fato, a Presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, queixou-se, com razão, que a China estava inundando o mercado global com veículos elétricos muito baratos, e que Pequim estava praticando dumping com preços artificialmente baixos, mediante excessivo subsídio estatal, entre outras formas de incentivos, violando diretrizes da organização Mundial do Comércio - OMC. A União Europeia - UE iniciou uma investigação sobre a indústria chinesa, medida que poderá implicar aumento das tarifas sobre as importações chinesas. Entretanto, vislumbra-se aqui a possibilidade de uma complexa guerra comercial com consequências potencialmente danosas, especialmente para os enfraquecidos europeus, cuja economia tem sofrido recentemente com a forte desindustrialização, altos custos da energia e outros golpes, alguns deles em consequência da guerra da Ucrânia e da obcecada busca por soluções ambientais e climáticas livres de energias de origem nuclear e fóssil, medidas consideradas por muitos analistas afoitas e economicamente arriscadas.
A queixa dos europeus em relação aos preços baixos dos veículos elétricos chineses surgiu, portanto, da absoluta incapacidade da indústria automotiva doméstica de competir com os produtos “Made in China”.
Brasil, Meca dos Biocombustíveis e os carros híbridos flex
É importante destacar, porém, que nesse campo o Brasil tem situação mais favorável que os países desenvolvidos. Reconhecidos como a melhor solução para veículos leves de uso privado neste momento, os veículos híbridos são geralmente associados a inúmeras vantagens: são livres do tempo de recarga excessivo dos elétricos puros e da baixa autonomia, inconveniente para quem viaja grandes distâncias; dispensam os subsídios e incentivos governamentais ainda necessários para atrair um pequeno nicho de consumidores de alto poder aquisitivo para os elétricos puros; não oferecem risco patrimonial (obsolescência devido à rápida evolução tecnológica dos elétricos e rápida desvalorização do veículo usado); não demandam uma bilionária rede de recarga capilar subsidiada em todo país, com carregadores sujeitos a panes frequentes, inclusive em áreas remotas, implicando alto risco de segurança aos usuários, especialmente em países com altos índices de criminalidade; emitem cerca de 35% menos CO2 na queima do combustível (uso final); carregam menos materiais em baterias muito menores que aquelas dos veículos elétricos puros, aliviando as diversas “pegadas” da mineração (problemas ambientais, trabalhistas e éticos e de emissão de carbono fóssil no ciclo de vida - ou seja, emissões do berço ao túmulo); se dotados de motores flex podem, se houver regulação específica adequada, rodar predominantemente com etanol renovável.
O Brasil, “Meca dos Biocombustíveis”, foi abençoado com o Proálcool e os veículos flex, com o Programa do Biodiesel, Programa do Biometano (voltado tanto para veículos leves quanto para pesados - ônibus e caminhões economicamente competitivos) e com o nascimento no âmbito do Programa Combustível do Futuro, do Programa do Hidrogênio Verde (que pode ser produzido a partir de biocombustíveis e biomassa) e do Programa do Diesel Verde, espécie de biodiesel (drop-in) sem as desvantagens operacionais e limitações técnicas e operacionais do biodiesel convencional. Não faria sentido ficar de costas para essas abundantes vantagens - para usuários, para o meio ambiente e o clima, na seara doméstica agroindustrial, da soberania e na arena geopolítica.
Nesse sentido, as recentes notícias de 30 de dezembro de 2023 sobre o lançamento pelo governo federal do Programa Mover, sucessor do Rota 2030 (que regulamenta o setor automotivo), anunciaram a implementação no processo de licenciamento ambiental de veículos nacionais e importados, da análise das emissões veiculares, não apenas relativamente à operação do veículo nas ruas, mas em todo Ciclo de Vida (emissões de CO2 fóssil do berço ao túmulo). Com isso, os híbridos flex serão objeto preferencial de incentivos, além da redução da carga de impostos. Essa medida parece sinalizar que as autoridades governamentais reconhecem ser esse o melhor caminho a seguir neste momento inicial de transição, da dinâmica transição energética no setor dos veículos leves.
Convém lembrar, que a tecnologia de propulsão de baixas emissões tem uma miríade de soluções em pesquisa e desenvolvimento ao redor do globo, inclusive no Brasil, sendo arriscado fazer afirmações peremptórias sobre quais delas predominarão (após análise criteriosa de custo/benefício) nas próximas décadas em cada nicho de aplicação veicular, tanto no Brasil, quanto em outros países.
Ainda sobre a mineração
Mas, de volta às mazelas da mineração, esse esforço mundial sem precedente em busca de alternativas não fósseis em benefício do meio ambiente e do clima, também exigirá a redução do consumo de combustíveis fósseis (diesel, gasolina, gás natural e carvão) em toda cadeia de extração e beneficiamento de minérios, produção e distribuição de produtos acabados, bem como o desenvolvimento de processos economicamente viáveis (o que é um grande desafio para o futuro) na coleta, reutilização, reciclagem e descarte dos diversos materiais tóxicos sucateados.
As compensações por danos efetivamente causados às comunidades locais, e a recuperação dos sítios degradados pela atividade mineradora, (na mesma linha dos ODS) são aspectos a serem previstos em todos os empreendimentos do setor.
Esse vasto conjunto de fatores de requerida atenção e providências, entre outros aspectos geopolíticos, pode aumentar ainda mais os custos dos insumos, produtos e consequentemente das tarifas dessa “nova energia”, que pelo menos por algumas décadas, ainda terá uma pegada fóssil expressiva (além da forte pegada de danos ao meio ambiente local) - porém, gradualmente decrescente.
Retrocesso alemão - batendo cabeça na política de renováveis
Salvo eventuais exceções ou equívocos de “sinalização de virtude”, não deverá haver relevante substituição do parque energético fóssil hoje instalado antes de seu sucateamento natural - ao contrário do que aconteceu na Alemanha, que além de pagar as atuais altas tarifas de energia, volta de forma constrangedora ao passado, queimando lenha e mais carvão mineral, após fechar usinas nucleares íntegras, limpas e mais seguras do que todas as alternativas de geração. A esse respeito, o governo alemão decidiu recentemente resgatar cerca de uma dúzia de usinas sujas a carvão e estender a vida útil de várias outras que deveriam ser fechadas.
Dilema da transição energética em países pobres e em desenvolvimento - Apartheid energético é injustiça social!
Como mencionado, haverá adição das novas energias renováveis no sistema energético predominantemente fóssil, especialmente a eólica e a fotovoltaica, com seus back-ups de grandes bancos de baterias para cobrir períodos de “apagão” de vento e radiação solar. Essa adicionalidade se deve à tendência de aumento do consumo energético no planeta, principalmente em razão do desenvolvimento civilizatório (energo-dependente) na Índia, China, Sul da Ásia, África, Indonésia e América Latina. Esses países consomem hoje, em certas regiões, apenas uma pequena fração da energia per capita dos “cidadãos médios” de países desenvolvidos, que tiveram a chance de se desenvolver graças à energia fóssil abundante e barata; em alguns países como o Brasil, porém, a energia hidrelétrica exerceu papel preponderante.
Mas, desde que não avancem as políticas de “apartheid energético” - que pressionam para impedir o acesso de países em desenvolvimento aos seus próprios recursos energéticos naturais, bloqueando empréstimos internacionais - com a desejável (pelos locais principalmente) disponibilidade capilar de energia abundante e barata, e o consequente desenvolvimento econômico, esses países/regiões atualmente carentes de energia, em apenas algumas décadas, multiplicarão seu consumo per capita atingindo níveis mais próximos aos dos países desenvolvidos. Isso é justiça social!
Uma vez vencidas as barreiras da fome, da pobreza e da educação precária, o desenvolvimento econômico trará consigo o avanço espontâneo de políticas ambientais e climáticas - fenômeno que ocorreu em Hong Kong, Taiwan, Coréia do Sul e em certas regiões hoje ricas da China.
É preciso que todos compreendam - especialmente os mais fervorosos militantes ambientalistas - que a sustentabilidade só existe se estiver apoiada em três pilares: meio ambiente, econômico e social. As políticas climáticas internacionais não deveriam esquecer esse princípio fundamental e inescapável - no entanto, parece que em alguns setores de decisão as ideias podem ser outras, desafortunadamente. É justamente aí que reside o paradoxo da transição energética..
Com a atual escassez de recursos minerais necessários à construção de parques energéticos eólicos e fotovoltaicos de vida curta, e seus respectivos bancos de armazenagem de energia; com as incertezas que cercam os futuros preços de insumos minerais - cujo mercado é controlado em grande parte por um único país; e com a instabilidade geopolítica que só se agrava após a pandemia da Covid-19, parece não haver garantias de que as decisões de expansão das redes elétricas e dos sistemas de transporte nesses países e regiões mais carentes - e até mesmo em países desenvolvidos como a Alemanha - serão baseadas em sistemas de geração exclusivamente renovável e veículos elétricos puros a bateria. Os fatos tem demonstrado que “a realidade tem casca grossa”. Senão, vejamos:
Um sonho chamado “Net-Zero” e a conflitante decisão da China de expandir consideravelmente seu enorme parque de geração a carvão
Não se trata aqui de colocar gratuitamente em xeque as atuais diretrizes mundiais “mainstream” (momentaneamente predominantes) que sinalizam para um compromisso futuro “Net-Zero 2030/2050” (descarbonização da matriz mundial parcial em 2030 e total em 2050). Na Revisão Estatística da Energia Mundial da British Petroleum - BP de 2022, das fontes de energia primária, o petróleo participa com 31%, o gás natural com 24% e o carvão com 27%, totalizando cerca de 82% do consumo mundial de energia. Ou seja, a proporção mundial de utilização de energia de origem fóssil é enorme, comparada àquela atribuída às energias renováveis, de 7%, e à nuclear de 5%; e todas as energias não fósseis totalizam apenas 18%. Como dito, não haverá substituição significativa, mas sim, uma dominante adição das alternativas renováveis futuras à matriz existente.
Com toda pressão dos compromissos internacionais, e apesar da recomendação da Agência Internacional de Energia - AIE (do relatório de 2022 “Coal in Net Zero Transitions”) de que nenhuma planta adicional de geração a carvão deva ser implantada, China e Índia estão neste momento construindo/planejando algumas centenas de usinas a carvão - embora a Índia tenha suspenso por cinco anos seus planos em meados de 2022. No caso da China, mais de 300 novas plantas (além das 1.142 existentes) a carvão estão no pipeline, e cerca de duas plantas por semana estão sendo licenciadas. No setor de térmicas a gás natural (fóssil), embora em menor número, há projetos de construção de novas unidades em andamento nesses dois países. Essas usinas irão produzir emissões fósseis de CO2 ininterruptamente e outros poluentes nocivos à saúde (material particulado cancerígeno - MP e óxidos de nitrogênio - NOx) até o ano 2080.
Lembre-se, que o desenvolvimento econômico que ocorreu na China com 1,4 bilhões de habitantes, irá inexoravelmente ocorrer com a Índia, que superou em abril de 2023 a população chinesa; isso provavelmente levará aquele país em algumas décadas a emitir quantidades de CO2 de origem fóssil potencialmente semelhantes à China.
Portanto, surge finalmente a “pergunta do milhão”:
Como avaliar essas decisões de expansão do parque de energia fóssil nos dois países mais populosos do planeta, vis-à-vis o compromisso firmado na Conferência das Partes de Paris de 2015 (COP-21), que implicaria, segundo a AIE, a necessidade de banimento de usinas carvão, de modo que seja mantido o incremento da temperatura média global em até 2 graus Celsius (acima dos níveis pré-industriais) até o final deste século, e que também seja possível nas próximas décadas - como medida de segurança - limitar o aumento da temperatura média da superfície da Terra a 1,5 graus Celsius?
*Olimpio Alvares é consultor em emissões e transporte sustentável. Engenheiro mecânico formado na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo em 1981, especializou-se no Japão e Suécia em emissões e transporte sustentável. É fundador e coordenador da Comissão de Meio Ambiente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), membro do Comitê do Clima e Ecoeconomia e do Comitê de Substituição de Frota (Comfrota), da Prefeitura de São Paulo. Ex-gerente de desenvolvimento de programas de controle de emissões veiculares da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), onde atuou por 26 anos.