Quem se interessa por processos judiciais encontrará grave e interessante material de investigação sobre justiça, aparelhamento do Poder Judiciário e interferência (imprecisa?) do Ministério Público na ação de reintegração de posse movida por Aquarius Hotel Limitada contra o Movimento Sem Teto do Centro, MSTC. O objeto da disputa é um imóvel central de 20 andares abandonado e que nunca cumpriu a função social da propriedade, localizado na Avenida São João, 601, São Paulo.
Não é a primeira vez que este prédio é ocupado. A ocupação anterior aconteceu em 2011 pelo mesmo MSTC. Uma ação judicial contra a última ocupação, ocorrida em março de 2014, tramita na 25ª Vara Cível do Foro Central da Capital. A juíza encarregada do caso concedeu liminar imediatamente porque considerou “vestígios” de direito dos proprietários, mesmo ante uma confissão de exposto abandono e subutilização.
O termo “vestígios” de direito, utilizado pela juíza, foi empregado para fundamentar a medida liminar, concedida imediatamente. A juíza não pediu nenhum esclarecimento sobre a subutilização, também não levantou qualquer questão sobre os motivos que levaram o prédio a ser ocupado novamente, tampouco a falta de função social. Ao conceder a medida liminar e determinar a expedição de ofício de requisição de força à Polícia Militar, a juíza também utilizou um expediente que vem sendo adotado por diversos juízes em casos de reintegração de posse e despejos coletivos: mandou oficiar o Conselho Tutelar e a Municipalidade “para a inclusão das famílias em programas sociais”.
Estes ofícios, expedidos ao Conselho Tutelar e à Municipalidade para atenção aos direitos e encaminhamento a programas sociais ou habitacionais, por outro lado, e de forma geral, não produzem resultados práticos. Os atendimentos sociais disponíveis se resumem a albergues, que não respondem às necessidades habitacionais. Os atendimentos habitacionais, quando são feitos, se encerram em cadastros. Os juízes e juízas nunca saberão se estes cadastros serão efetiva demanda no plano de habitação municipal em execução, porque em geral não são informados e o processo é arquivado.
De volta ao caso da reintegração da Avenida São João, 601. Quando a juíza concedeu a liminar, ela também determinou aos proprietários que zelassem pela integralidade de todos os moradores e pela remoção de modo menos opressivo. Depois de entregues os ofícios, os advogados dos proprietários voltaram à juíza para argumentar, com base em direitos fundamentais, que caberia ao Estado zelar pela integridade da dignidade e bem-estar geral dos moradores. Então estes advogados pediram que o mandado de reintegração fosse aditado para determinar que caberia ao Estado promover alimentação, transporte, depósito de bens e realocação dos moradores.
A juíza acatou o pedido dos proprietários determinando em despacho: a inclusão de famílias em programas sociais e o encaminhamento para outras moradias, mesmo provisórias, incluindo-se transporte, alimentação e demais medidas para remoção, estão a cargo da Municipalidade.
Promover estes meios, como transporte e guarda-móveis, é uma obrigação regida pelas normas da Corregedoria de Justiça, cabendo aos proprietários custearem. O fato é que se trata de imóvel privado e a municipalidade foi oficiada, por ordem judicial, a pagar com verba pública esta despesa, decorrente do abandono e subutilização particular.
Depois de inúmeras trocas de mensagens, cópias devidamente juntadas, petições dos advogados dos proprietários e pedidos de esclarecimento à Polícia Militar pela juíza, a municipalidade, intimada sob pena de multa, recorreu com agravo de instrumento ao Tribunal de Justiça em junho e perdeu por questões processuais, ou seja, teria que arcar com os custos da reintegração.
As mensagens trocadas com os técnicos da administração municipal no corpo da ação judicial mostram que o debate centrou-se em quantos caminhões seriam suficientes, no pedido de lanche para a Polícia Militar, na informação de que o Subprefeito da Sé abriu processo administrativo para gastar dinheiro público em regime de urgência em favor do latifundiário urbano, particular e ocioso e nas incansáveis e justificadas análises de risco para cumprimento da reintegração de posse de 16 de setembro. E nada sobre o atendimento habitacional.
Justamente os meios para a remoção, que tinham sido causa de reiteradas tentativas frustradas da reintegração de posse, inclusive a tentativa nada amistosa de agosto, foram o motivo de resistência e conflito com a Polícia Militar, noticiado por toda imprensa.
Mas e o Ministério Público? Coube ao MP oficiar a Assistência Social sobre o que tinha. Qual Programa? Nenhum. Algum atendimento social? Não. O problema é habitacional. E a ordem para atender com moradias? Não valeu? Silêncio.
Sem atendimento social, sem moradia e sem móveis – destroçados pelo caminho –, as famílias sofreram abuso de autoridade, foram conduzidas para o Distrito Policial e detidas em um posto de gasolina. O prédio foi reintegrado ao abandono. Mas o processo continua. Até agora, a certidão de reintegração de posse não foi apresentada pelo oficial de justiça. Há mais alguma coisa de que não sabemos?
Em tempo: Os processos judiciais das varas centrais, distribuídos a partir de 2014, são digitais. No site www.tjsp.jus.br, é possível se cadastrar e ver processos na íntegra. O número deste processo é 1026333-23.2014.8.26.0100. O agravo de instrumento é o processo número 2087157-89.2014.8.26.0000. Também há ação de desapropriação contra a Aquarius Hotel S.A., nº 0003178-75.2012.8.26.0053, não disponível em meio digital.
* por Luciana Bedeschi, advogada do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território da Universidade Federal do ABC (UFABC). Este artigo foi publicado, originalmente, no site ObservaSP