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31/10/2014

Opinião - Quem vai (e quem não vai) morar em São Paulo?

O Conselho Municipal de Habitação (CMH), após um período de debates, aprovou recentemente os critérios que o município deve adotar para organizar o atendimento habitacional no programa Minha Casa Minha Vida. Esses critérios são aplicáveis aos empreendimentos de “demanda aberta”, ou seja, construídos para serem ocupados por famílias cadastradas na prefeitura e não vinculados a nenhuma entidade ou a obras específicas de urbanização de assentamentos precários.

Segundo os critérios nacionais, devem ser priorizadas famílias (1) chefiadas por mulheres, (2) com pessoas com deficiência ou (3) que vivem em situação de risco, considerando sujeição a desmoronamentos e enchentes, ou que tenham sido desabrigadas. No nível local, o município deve adotar cotas de 3% de unidades para idosos e outros 3% para pessoas com deficiência e, nas restantes (94%), pode atender em metade das unidades habitacionais dos empreendimentos (47%) famílias removidas por obras de infraestrutura para solução de situações de risco. Somente na outra metade (47%) aplicam-se os critérios de hierarquização e priorização.

Em São Paulo a “pontuação” das famílias se dará segundo condições de (4) vulnerabilidade socioeconômica, (5) precariedade habitacional e (6) territorialidade, de modo que será possível somar até 6 “pontos”, atendendo aos 3 critérios nacionais e aos 3 adicionais. Esses procedimentos tendem a dar objetividade nos processos de seleção, mas ao mesmo tempo mobilizam, nos critérios adicionais particularmente, três dimensões da vida urbana que suscitam amplas reflexões: O que é ser (mais) vulnerável, morar (mais) precariamente ou ter relações territoriais (mais efetivas) com os locais de implantação dos empreendimentos?

A “vulnerabilidade socioeconômica” é um conceito que vem sendo utilizado por institutos de pesquisa para ampliar a noção de “pobreza urbana” para além da renda. A Fundação Seade, baseada em dados dos Censos do IBGE, classifica e distribui territorialmente a população em grupos que vão de “baixíssima vulnerabilidade” a “vulnerabilidade muito alta”, considerando não apenas renda, mas também escolaridade e ciclos de vida familiar. Em termos muito gerais: uma família com muitas crianças, chefiada por mulher com baixa escolaridade terá mais dificuldade em escapar por sua própria conta da sua condição de “pobreza” do que outra, menos numerosa, mais escolarizada. Na hierarquização para acesso à moradia do MCMV no município de São Paulo, a condição de vulnerabilidade tem sido encarada de maneira bastante ampla, incluindo (1) famílias numerosas e com muitos dependentes (crianças e idosos); (2) famílias cujos titulares sejam idosos; ou (3) com mulheres, lésbicas, gays, bissexuais em situação de violência doméstica; (4) com travestis ou transexuais; (5) autodeclarados negros ou índios; (6) oriundos de situação de rua; ou que, ainda, (7) tenham em sua composição crianças e adolescentes em situação de abrigamento. Bastaria se enquadrar em uma dessas 7 situações, sem qualquer hierarquia interna ao critério, para a família “pontuar”.

A “precariedade habitacional” também pertence a uma discussão que passa por aspectos quantitativos e qualitativos. Podem-se mobilizar as categorias de “déficit” medidas pelo Censo: domicílios precários, alugados e excessivamente adensados, coabitados por mais de uma família ou que gerem ônus excessivo com aluguel. Pode-se ainda tratar da “inadequação habitacional”, também quantificada pelo Censo: domicílios sem banheiro, próprios e excessivamente adensados, ou carentes em infraestrutura. Mas, usualmente, pela falta de quantificação generalizada, excluem-se os casos de precariedade na habitabilidade (casas com trincas, mofo, sem ventilação ou iluminação, sem acabamentos). Nos critérios adotados pelo CMH, a precariedade habitacional foi definida pelo ônus com aluguel ou pela ausência de unidade sanitária, sendo que, particularmente nesta última dimensão, incluem-se moradores de cortiços.

Em relação à “territorialidade”, o princípio geral é que os empreendimentos sejam ocupados por famílias que já estabelecem de algum modo uma relação com a região, já se constituem como demandas dos equipamentos públicos, já mantêm laços de vizinhança, pertencimento. Esses laços podem se dar a partir dos locais de moradia ou de trabalho, numa esperança de que os empreendimentos produzidos em áreas centrais, bem localizadas, possam atrair populações que atualmente residem em áreas periféricas, invertendo o histórico de deslocamento dos mais pobres para regiões mais distantes das benesses urbanas. Para a Prefeitura de São Paulo, a unidade mínima de territorialidade é o distrito e morar ou trabalhar no distrito passa a ser condição de priorização de atendimento.

A soma desses critérios — os nacionais (risco, famílias chefiadas por mulheres ou com a presença de pessoas com deficiência) e os locais (vulnerabilidade, precariedade habitacional ou territorialidade) — garantiria uma lista de prioridades de atendimento para cada empreendimento, sendo que naquela metade (47%) de unidades distribuídas segundo os critérios, 75% das famílias beneficiárias deverão atender entre 6 e 5 critérios e as 25% restantes podem se enquadrar em até 4 critérios. São medidas que visam tornar mais justa essa distribuição — que é por si insuficiente e em nada diversificada para dar conta do enorme leque de necessidades habitacionais.

Apesar de todo o esforço e debate, ainda estão na ordem do dia os atendimentos mais emergenciais, que deem abrigo imediato a mulheres e pessoas LGBTT em situação de risco de morte, muitas vezes ameaçadas por familiares ou pessoas próximas. Essas pessoas não podem esperar que as obras dos empreendimentos fiquem prontas e, se a assistência social, neste caso, é intimamente relacionada à assistência habitacional, o atendimento não passa exatamente pela transferência de propriedade.

Da mesma forma, o enfrentamento da precariedade habitacional não precisa corresponder a uma casa nova, muito menos própria. Domicílios precários podem ser melhorados, podem ser reformados, recuperados, ampliados, acabados… sem gerar demanda por nova habitação. Em relação à localização, vale lembrar que se trata de uma característica própria (e externa) dos imóveis urbanos que foi construída socialmente e não se repete! Decorre de um conjunto de fatores, de investimentos públicos e privados, de usos e costumes de cada território, em cada momento histórico. Os limites usualmente abstratos de “distrito” ou “raios de influência” de cada empreendimento são pouco representativos das realidades urbanas. Se distrito ou raio de influência são cortados por uma grande avenida, linhas férreas, ou por um rio, são potencialmente demarcados espaços muito diversos, segregados, com localizações e acessos diferenciados a equipamentos e serviços.

Não haverá critério suficiente para compensar a negação do direito à moradia digna e, ademais, o acesso individualizado à unidade nova, com propriedade privada, é absolutamente insuficiente para contemplar um universo de necessidades habitacionais. Se o MCMV é hegemônico e tem submetido os governos locais a tarefas secundárias, cabe aos municípios retomar o papel central que tiveram durante os anos de ausência de programas e financiamentos federais e criar as alternativas de programas e financiamentos necessários ao enfrentamento desse complexo problema urbano.



* por Caio Santo Amore, arquiteto e urbanista da Peabiru, doutor pela FAUUSP, membro do Conselho Municipal de Habitação de São Paulo. Artigo publicado no site ObservaSP









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