Soraya Misleh*
A pretensão do governo federal de retomar as obras de construção da Usina Angra 3 ao final deste ano, após anúncio de investimentos em energia nuclear da ordem de R$ 15,5 bilhões, tem dividido a opinião de especialistas. Para além daqueles que se posicionam frontalmente contra sua utilização, a polêmica principal é quanto a ser ou não prioridade neste momento de escassez hídrica.
Segundo notícia divulgada em 17 de julho último pela Eletronuclear, subsidiária da Eletrobras responsável pela geração de energia nuclear, o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, enxerga essa alternativa como uma das preferenciais no planejamento estratégico da Pasta para os próximos anos. “É muito importante para uma matriz elétrica mais equilibrada e voltada para preservar os nossos reservatórios de água, especialmente em época de escassez hídrica e pouca afluência”, salientou.
As declarações foram feitas durante visita do diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), Rafael Grossi, às instalações da Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto (CNAAA), em Angra dos Reis, acompanhado de várias autoridades e recebido não só pelo ministro, mas também por dirigentes da Eletronuclear, entre os quais seu presidente, Leonam dos Santos Guimarães.
Este último enfatiza: “O Brasil dispõe de grandes recursos do mineral urânio [nona maior reserva do mundo de acordo com a AIEA] e tem pleno domínio do ciclo do combustível nuclear. A matriz energética brasileira é uma das mais limpas do mundo, com baixíssima emissão de CO2. Apesar dos fortes investimentos em geração fotovoltaica e eólica, precisamos garantir o suprimento de energia de base e, nesse contexto, a energia nuclear é uma grande opção.”
Sob essa ótica, propugna pela conclusão de Angra 3, prevista para final de 2026, como “fundamental ao fornecimento de energia para o Sudeste – região de maior consumo – e à estabilidade do Sistema Interligado Nacional (SIN), ainda mais no momento de crise hídrica”. Ele acrescenta: “Atualmente, estamos atravessando um regime de baixa fluência pluviométrica que acarreta enormes prejuízos aos reservatórios de água de nossas usinas hidrelétricas. O acionamento de plantas térmicas é uma possível saída, mas o uso de combustíveis caros e que emitem gases de efeito estufa é um entrave. Desse modo, fica evidente a competitividade da fonte nuclear sob os aspectos de modicidade tarifária e de abastecimento de energia firme na base do sistema.”
Críticas e ponderações
O professor emérito da Universidade de São Paulo (USP) e sênior do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da instituição, José Goldemberg, contudo, está entre os que não a consideram prioritária. “Energia nuclear representa hoje aproximadamente 2% da eletricidade consumida no País. Poderá aumentar para 3% até 2030 segundo as projeções da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) do Ministério de Minas e Energia com Angra 3, cuja construção já se arrasta por mais de 30 anos e que necessita de mais US$ 3 bilhões para ser concluída até final de 2026. Energia nuclear não poderá, portanto, contribuir para resolver os atuais problemas do suprimento que são muito mais urgentes e portanto prioritários”, pontua.
Clarice Ferraz, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretora do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico (Ilumina), concorda: “A tecnologia nuclear é de muito longa maturação. Entrando em operação no ano de 2027, não será capaz de remediar nossos problemas agora.” Ela vai além: “Causa, no mínimo, estranhamento [que o ministro fale em prioridade]. Os sinais macroeconômicos que o País vem dando hoje não são atrativos para um investimento de longo tempo de realização, de capitalização e mais ainda para amortização."
“Cresce Brasil + Engenharia + Desenvolvimento” – que reúne propostas factíveis ao desenvolvimento sustentável nacional e vem sendo atualizado periodicamente desde seu lançamento no ano de 2006 –, a Federação Nacional dos Engenheiros (FNE) recomenda a continuidade do programa nuclear, com a construção de Angra 3, para aproveitamentos futuros, levando em conta a necessidade de diversificação da matriz energética para suprir a demanda sobretudo em momentos de escassez.
Em seu projeto
Como observa o coordenador técnico do “Cresce Brasil”, Carlos Monte, “Angra 3 é uma das maiores obras paradas no País, de maior valor. O prejuízo de nunca ficar pronta é enorme, exige gastos com manutenção, uma vez que, sem conservação, a estrutura vai de deteriorando”. O tema é abordado na última edição do "Cresce Brasil", lançada em 2020, que apresenta um programa de retomada de obras públicas à recuperação econômica pós-pandemia de Covid-19.
Histórico e investimentos
Angra 3 começou a ser construída há 37 anos. Desde então, a obra foi interrompida e retomada inúmeras vezes. A última delas em 2010, quando cinco anos depois foi paralisada mais uma vez. Conforme consta do site da Eletronuclear, até o momento “foram executadas cerca 67,1% das obras civis da usina. O progresso físico global do empreendimento, considerando todas as outras disciplinas envolvidas, é de 58,4%”. Ao empreendimento, segundo a empresa, até setembro de 2015 “já foram alocados cerca de R$ 5,3 bilhões de um total de R$ 14,8 bilhões (base de junho de 2014) de custos diretos que serão investidos”, sendo que aproximadamente 75% desse valor dentro do País.
Os recursos para a construção de Angra 3, continua a Eletronuclear em seu site, estão sendo obtidos, principalmente, por meio de empréstimos tomados pela Eletrobras. “Os equipamentos e serviços contratados no mercado nacional estão sendo custeados por meio de financiamento do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social].” Já para aquisição de máquinas e equipamentos importados e contratação de serviços externos, mediante contrato com a Caixa Econômica Federal.
De acordo com o presidente da Eletronuclear, quando Angra 3 estiver em operação – acrescentando mais 1.405MW aos quase 2GW atuais oriundos de Angra 1 (650MW) e Angra 2 (1.350MW), a geração da nova usina será suficiente para atender 4,45 milhões de pessoas.
A longo prazo
Goldemberg explica que “existem vagos planos para construir outras centrais nucleares após 2030, mas envolvem grandes obras e pesados investimentos – algo como US$ 5 bilhões cada”. Uma dessas projeções, como lembra, dá indicações de que se poderiam construir oito centrais nucleares até 2050, “de modo que sua participação na matriz elétrica aumentaria, mas ainda assim permaneceria abaixo de 10%, enquanto outras opções para a geração de eletricidade (energia eólica, biomassa, solar (PV) poderiam ser muito maiores e mais baratas”.
Em seu Plano Nacional de Energia (PNE 2050), o Ministério de Minas e Energia recomenda de instalação de 8 a 10GW de fonte nuclear. “A configuração da matriz elétrica em 2050 é praticamente igual nos dois casos”, conforme o documento; a diferença é que com a ampliação para 10GW haveria “uma pequena retração de 6GW na expansão de solar PV [fotovoltaica]”.
Segundo descrito no relatório final que norteia o PNE 2050, apresentado no ano passado, essa expansão precisa ser avaliada considerando-se “aspectos relacionados a uma política energética vinculada à Política Nuclear Brasileira”. E assim, “baseada em uma análise de custo-benefício mais geral, não restrita apenas a seus serviços no setor elétrico (incluindo-se possíveis ganhos de escala), mas também às economias de escopo em atividades como defesa (submarino com propulsão nuclear), medicina nuclear (equipamentos de diagnósticos, radiofármacos etc.), agricultura (controle de pragas, irradiação de alimentos etc.), entre outros”.
À expansão prevista para os próximos 30 anos, Guimarães revela que “o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) determinou a retomada dos estudos de localização de novos sítios nucleares no Brasil”. Após a definição de áreas candidatas, como explica, estas serão submetidas à aprovação do Congresso Nacional.
Monopólio da União sob ameaça
Um dos problemas, contudo, é de recomendação no relatório do PNE 2050 de aprimoramento do marco regulatório associado à energia nuclear, com flexibilização do monopólio da União – o qual está definido na Constituição Federal em seu artigo 21, inciso XXI, para “exploração de serviços e instalações nucleares de qualquer natureza” e sobre “a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minerais nucleares e seus derivados”. No PNE 2050, a sugestão é de adoção de parcerias público-privadas em novos empreendimentos, o que implicaria, portanto, mudança na Carta Magna. Para Ferraz, causa espanto que “isso seja abordado num governo que tem um ministro militar, porque é uma questão inclusive de segurança nacional”.
Hoje este monopólio é exercido através de duas empresas públicas estatais, vinculadas ao Ministério de Minas e Energia: a Indústrias Nucleares do Brasil (INB), detentora da exploração do urânio, e a Eletronuclear. Até o momento, embora amplamente criticada e desaconselhada por especialistas do setor por seu caráter estratégico ao desenvolvimento e soberania nacionais, a privatização da Eletrobras – prevista na Lei 14.182, de 12 de julho de 2021 – não mexe no monopólio da União em relação à energia nuclear. Prevê a criação de uma nova estatal para gerir a Eletronuclear. “No orçamento de 2021 do governo federal, existe a previsão de R$ 4 bilhões para concretizar a criação da empresa”, assegura Guimarães.
Riscos e garantias
Além da preocupação socioambiental, sobretudo no que concerne ao armazenamento de dejetos altamente contaminantes, a questão da segurança é chave nas justificativas dos que se opõem à expansão da energia nuclear no Brasil.
Goldemberg reforça, além do alto custo para a conclusão da obra, os riscos de acidentes em reatores nucleares. “Eles não são frequentes, mas quando ocorrem seus efeitos são devastadores, como mostra o exemplo do que ocorreu em Chernobyl [1986] e em Fukushima [2011]”, pontua. Segundo ensina, aumentar a proteção contra acidentes tem custos elevados e “esta é uma das razões por que a eletricidade gerada em reatores nucleares ficou tão cara”. Ademais, complementa, “não há como garantir total segurança, como, aliás, não existe em outras tecnologias, mas o problema é que, quando ocorrem acidentes nucleares, grandes quantidades de radioatividade são lançadas no meio ambiente, podendo atingir não só os trabalhadores nas usinas como populações situadas a grandes distâncias do local do acidente nuclear”.
Monte diz que toda vez que há alguma ocorrência no mundo, os próprios responsáveis locais, além da AIEA, examinam a situação para que não se repita. Em geral, acidentes são consequência, na sua análise, de alguma falha no sinal do equipamento ou de algo não previsto, inesperado, “como no caso do Japão, cuja usina estava próxima da praia e maremoto promoveu a inundação da central nuclear”.
A partir do acidente em Fukushima, o coordenador técnico do “Cresce Brasil” informa que novos protocolos internacionais de segurança foram gerados. Além de atualização constante em tecnologias já implantadas, o importante, como frisou, é cumpri-los “quando se vai fazer mudança de uma válvula ou estabelecer uma forma de planejamento ou linha de manutenção, renovação de equipamento”. Ele considera natural que isso esteja sendo feito pela Eletronuclear.
É o que garante Guimarães, segundo o qual a empresa acompanha as inovações e atualizações de segurança no setor por meio de cooperação com entidades internacionais, como a AIEA, a Associação Mundial de Operadores Nucleares (Wano, na sigla em inglês) e o Instituto de Pesquisa em Energia Elétrica, entidade americana especializada no desenvolvimento tecnológico na área de energia. “A AIEA e a Wano, inclusive, fazem inspeções periódicas em Angra 1 e 2, prática que também será adotada em Angra 3”, assegura. Ainda segundo informa, as atividades das usinas também são supervisionadas diariamente por inspetores da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), o órgão regulador do setor, e seus operadores são obrigatoriamente licenciados por este, além de altamente treinados.
O presidente da Eletronuclear lembra também que as usinas foram projetadas e construídas com barreiras de proteção sucessivas e preparadas para resistir a um acidente severo. “Vale lembrar que, em quase 40 anos de operação da central nuclear de Angra, não houve qualquer tipo de acidente. As usinas de Angra contam com um reator do tipo PWR (de água pressurizada), o mais utilizado em todo o mundo. Além disso, foram projetadas para resistir a vários tipos de incidentes. Entre os externos consideram-se o maior terremoto que poderia ocorrer no sítio e o efeito da explosão de uma carga de TNT num caminhão trafegando em estrada próxima. O prédio onde fica o reator nuclear tem barreiras de concreto e de aço dimensionadas para resistir a esses tipos de evento”, detalha.
Guimarães observa que o que ocasionou o acidente em Fukushima – terremoto e tsunami – é “altamente improvável de acontecer aqui, devido às características geológicas do território brasileiro. A região Sudeste do litoral brasileiro (onde ficam Angra 1 e 2 e, futuramente, Angra 3) está situada na placa tectônica sul-americana, que se afasta da africana. Portanto, no Oceano Atlântico Sul não existem as condições necessárias para gerar os tsunamis (maremotos)”.
Mesmo assim, de acordo com sua informação, a Eletronuclear vem implementando medidas para aprimorar ainda mais a segurança das usinas nucleares nacionais, “com base nas lições aprendidas com o acidente. Aliás, isso aconteceu no setor em todo o mundo”, que realizou nova análise de todos os possíveis fenômenos naturais, como terremotos e eventos meteorológicos extremos (ventos e chuvas). “Toda a base de dados geológica e sismológica foi revisada e metodologias atuais de análise probabilística de ameaça sísmica foram utilizadas nessa reavaliação. A base de dados de eventos meteorológicos também foi complementada e atualizada. O impacto de eventuais ações de tornados e furacões foi redimensionado, considerando hipóteses de ocorrência bastante remotas (uma vez, num período de tempo de, no mínimo, 10 mil anos). O resultado desses estudos, conduzidos com a participação de especialistas de renome nacional e internacional, concluiu que o projeto das nossas usinas nucleares possui margens de segurança satisfatórias para resistir aos eventos externos”, assevera.
Em relação a Angra 3, como afirma Guimarães, apesar de ter sido planejada nos anos 1970, ao longo do tempo, mudanças foram feitas na concepção original para incorporar inovações tecnológicas, também pela experiência operacional do setor nuclear e exigências das normas nacionais e internacionais, revisadas no período. “Uma das maiores no projeto será a adoção de instrumentação e controle digitais e de uma sala de controle mais moderna, similar às das usinas que estão sendo construídas na atualidade.”
* Colaborou Jéssica Silva
Foto no destaque da matéria: Instalações da Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto (CNAAA), em Angra do Reis (RJ). Crédito: Divulgação Eletronuclear