Rita Casaro
Integra suas contribuições à pesquisa e desenvolvimento nesse setor a fundação dos laboratórios da USP de Microeletrônica, em 1970, e de Sistemas Integráveis (LSI), em 1975. Também presidiu, desde a sua criação em 1998 até 2017, a Associação do Laboratório de Sistemas Integráveis Tecnológico (LSI-TEC).
Entre as inúmeras homenagens e muitos títulos recebidos, Zuffo foi agraciado pelo SEESP em 1991 com o prêmio “Personalidade da Tecnologia” na categoria Informática.
Nesta entrevista ao Jornal do Engenheiro ele fala sobre essa longa e profícua trajetória – desde que foi fortemente "incentivado" pela mãe a trocar a química pela eletrônica após algumas explosões –, as oportunidades perdidas pelo Brasil no setor e aponta possibilidades para recuperar o prejuízo. Tais preocupações estão presentes também nos dois livros que está escrevendo sobre ciência e tecnologia, com previsão de lançamento para 2022. Nas obras, examina o caminho percorrido pelo País até aqui e descortina perspectivas para o futuro, inclusive os riscos potenciais dos avanços, como a possibilidade de inteligência artificial controlando a vida humana. Confira a seguir e no vídeo ao final.
Como foi o seu encontro com a engenharia?
A década de 1950 foi muito empolgante para as crianças. Era a época do ano geofísico internacional. Em 1958, os americanos iam lançar um foguete, o Vanguard, mas explodia toda hora, não conseguia sair do lugar e, nesse ínterim, os russos lançaram o Sputnik em outubro de 1957 e, em novembro, a Laika (cadela enviada ao espaço a bordo da Sputnik II, programa espacial soviético). Realmente entusiasmava, então eu prestei o concurso para a Escola Politécnica em 1959. Comecei com química, mas, aos 13 ou 14 anos, explodi o laboratório, então minha mãe me pôs compulsoriamente em eletrônica. Fiz o curso e comecei a trabalhar numa empresa que desenvolvia instrumentação para medicina nuclear e medidas da área de engenharia nuclear. Aprendi inclusive a parte de projetos, de amplificadores de potência. Essa empresa fabricava transistores que queimavam. Então, quando terminei o estágio, a tese de doutoramento foi exatamente esse problema.
Como se deu o desenvolvimento do primeiro circuito integrado brasileiro?
Houve uma visita de quatro financiadores à USP, e nós propusemos a construção do Laboratório de Microeletrônica, o que foi entusiasticamente aceito. Em abril de 1970 o montamos e então resolvi projetar o circuito integrado [em abril de 1971]. Ainda tenho aqui, e tenho a impressão que funciona até hoje. Não testei, mas como tenho circuitos eletrônicos que montei quando tinha 16 anos e ainda funcionam...
O que esse feito representou para a engenharia nacional?
O primeiro circuito integrado americano tinha sido feito, de forma mais rudimentar, há apenas 12 anos. Em 1971, o Japão não tinha indústria de microeletrônica; a Coreia nem pensava. Eu me lembro dos orientais fotografando, em 1967, a fábrica da Philco no Tatuapé, para você ter uma ideia. E depois tivemos várias fábricas de circuito integrado no Brasil. Em 1974, fundei o LSI-USP. Eu fazia a tese de docência e [abordei o problema] de quando houvesse o microprocessador com um milhão de componentes, pensei num sistema que pudesse ser expandido. Na época, tínhamos financiamento à vontade para pesquisa na área de tecnologia e fizemos o microcircuito de múltiplas camadas. E tivemos projetos muito importantes na indústria, como o da Itautec em 1981, que previa [montar uma fábrica] com 2 mil doutores em 1990. O que o grupo falou: “Nós vamos montar uma empresa que vai ter prejuízo por dez anos e queremos abater no lucro do grupo Itaú.” Na época, o Ministro do Planejamento [Antonio Delfim Netto] não aceitou. Hoje, poderíamos ter uma empresa maior que a Samsung.
Quais foram os próximos passos do LSI?
No início da década de 1980, começaram a sair os microprocessadores mais sofisticados, uma linha 68.020 da Motorolla, de 32 bits. Então, em nível planetário, começou a surgir a ideia de fazer supercomputadores com um montão de microprocessadores: substituir o elefante por um exército de formiguinhas. No LSI entramos numa área de microeletrônica com multicamadas e circuitos integrados e em outra com projetos de supercomputadores baseados em microprocessamento. Na década de 1990, fizemos um novo projeto de desenvolvimento de realidade virtual para medicina. Aí começamos a trabalhar em computação paralela de maior porte. Em 1997, apresentamos na Super Computer em San José, na Califórnia. Foi um choque para os americanos, de um lado tínhamos a Nasa, em frente o Departamento de Defesa e do outro lado o Caltech (California Institute of Technology), com um computador cheio de fios, e o nosso arrumadinho. Passamos [o projeto] para a indústria. Quem ganhou [a licitação] foi a Elebra, que faliu, e aí passou para a Itautec, que fabricou essas máquinas durante quatro ou cinco anos.
Em 1998, chegou a época da realidade virtual, só que o computador de acionamento era fabricado pela Silicon Graphics, e eles pediram US$ 1,5 milhão. Eu só tinha US$ 150 mil para terminar o projeto. Aí pensamos: “Já fizemos o computador paralelo em number crush [de cálculo pesado]. Vamos tentar fazer o gráfico?” Aí o Marcelo (Zuffo, também professor da Poli e filho de João Antonio Zuffo) entrou no projeto e teve sucesso, funcionou maravilhosamente. Ele apresentou essa tecnologia em San Antonio (nos EUA) em 2001 e foi ela que prevaleceu no mundo. No Brasil, fizemos um sistema de realidade virtual de voo e levamos a Bonn, na Alemanha. O prefeito quis comprar. Era mais barato vender a ele que trazer de volta. Depois, teve uma época em que a Petrobras quis implantar [o mesmo sistema] e foi perguntar a respeito aos alemães, que disseram “vá procurar o prof. Zuffo que ele tem a tecnologia”. Os próprios brasileiros não acreditam no Brasil.
Como foi o trabalho com projeto da TV digital?
Em 1999, 2000, a NEC nos procurou para fazer transmissões experimentais com o seu centro de pesquisas, então estabelecemos um link de TV Digital. Foi quando entramos midleware, o projeto Ginga e, por fim, acabou saindo uma série de versões privadas das empresas multinacionais. O sistema [pensado originalmente] permitia até 11 canais. A ideia era subdividir o canal de alta definição em múltiplos de definição média para ter até televisões de comunidades locais, mas infelizmente não foi o caminho que as coisas seguiram.
na área e falamos da possibilidade de ter um sistema brasileiro, num consórcio de 11 universidades. Fizemos a primeira transmissão experimental com a colaboração do Mackenzie, que tinha um transmissor no [bairro do] Sumaré, [em São Paulo]. Recebemos as imagens na USP. Estavam Ethevaldo Siqueira (jornalista e consultor especializado em telecomunicações, eletrônica de entretenimento e novas tecnologias da informação) e o ministro das Comunicações Miro Teixeira assistindo a essas transmissões. Havia também um grupo no Rio desenvolvendo o que chamavam de
Como o senhor vê o nosso cenário hoje no Brasil em ciência e tecnologia? Por que não avançamos após tantos projetos bem-sucedidos?
Por pura falta de visão dos nossos políticos. Atualmente, falta financiamento para pesquisa tecnológica e científica. E a interligação entre universidade e indústria é muito difícil, tanto que o pessoal chama de vale da morte. Precisa ter um acoplamento estreito. A ideia do LSI-TEC foi exatamente essa, estabelecer essa ponte. [E tivemos dois grandes problemas]. Em 1982, a quebra do México e, na década de 1990, uma abertura de mercado insensata, sem contrapartida. Perdemos o pé. Foi dada muito pouca importância à tecnologia e à ciência, além das outras áreas acadêmicas. Foi um suicídio o que o Brasil fez. Teve uma iniciativa brilhante com a criação do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, em 1951] e voltamos para trás. O Consenso de Washington nos enterrou.
Há janelas de oportunidades para que o Brasil possa avançar tecnologicamente?
Acho que existem grandes possibilidades nas áreas de sensores e microssensores, com a Internet das Coisas e chips não sofisticados, projetados aqui e difundidos no exterior. Numa primeira fase, a difusão de chips no exterior não é pecado. Ainda temos capacidade de projeto, embora estejamos perdendo. A segunda coisa, eu entraria na área de energia fotovoltaica, com proteção para empresa nacional. A gente já dominava essa tecnologia em 1971, 1972. Eu procuraria fazer placas baratas, não precisam ser supereficientes. Armazenamento de energia também, é a coisa mais séria que temos. Porque gera eólica e fotovoltaica, mas não armazena e, por isso, tem que queimar óleo e carvão.
Há obstáculos que impedem seguir esses caminhos?
O grande problema do Brasil hoje é a área econômica com uma visão muito puramente financeira. Não pode olhar para o próprio umbigo sem olhar para as possibilidades estratégicas. Estamos entrando numa situação geopolítica que talvez seja favorável ao País, [com a disputa entre Estados Unidos e China]. Uma situação parecida que o Getulio Vargas aproveitou na década de 1930 para industrializar o Brasil. E agora voltamos para trás. Estamos destruindo a indústria. Teve a Lava Jato. Nenhum país destruiu as empresas de engenharia em situações assim. Não se monta uma estrutura de engenharia do dia para a noite. Então não se destroem as estruturas, pegam-se as pessoas que são corruptas. Isso é uma ação suicida. E isso não quer dizer que eu defenda os corruptos. Ninguém cresceu com ultraliberalismo, os países crescem incentivando as empresas nacionais. O pessoal fala em reforma, mas ninguém fala em reforma para aumentar a eficiência e a produtividade do Estado. Falta engenharia de Estado para otimizar as coisas no País. Como no Sul, [o caso do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), fábrica estatal de semicondutores localizada no Rio Grande do Sul que entrou em liquidação]. É como se não custasse nada a engenharia, é muito simples fechar. Eles até poderiam ser ineficientes, mas foi um problema de estratégia. A estrutura precisa ser mantida, o País está perdendo bilhões. Veja o que está acontecendo com a ciência nacional na área de biologia em que sempre fomos primeira linha, está uma falta de verba absurda. Não pode permitir faltar recursos, a prioridade tinha que ser as coisas feitas aqui, mas o pessoal acha que importando resolve.
O senhor está escrevendo um livro? Qual o tema e a previsão de lançamento?
Estou escrevendo um livro que se chama “Revendo o passado e pensando no futuro”. Eu examino os problemas que aconteceram no País desde [o acordo de] Bretton Woods, em 1944: como o Brasil se inseriu nessa situação, como se desenvolveu na década de 1960 e 1970 apesar de todas as crises, e faço uma projeção para o futuro. [Aponto] os problemas na década de 1990 e as oportunidades que perdemos na de 2000, quando tínhamos dinheiro, não foi feito o suficiente para que o Brasil crescesse; achavam que as coisas cresciam sozinhas por moto perpetuo. Examino as falhas do ponto de vista de sistemas de engenharia. Estou trabalhando há dez anos no livro e estou quase no fim. Quero lançar em inglês e português simultaneamente, provavelmente no primeiro semestre do ano que vem.
A rigor, tenho dois livros [em andamento], outro de ficção científica e tecnológica que está pronto, preciso rever e lançar. Esse é uma forma de divulgação científica, mostrando as possibilidades dos próximos dez a 20 anos. Por exemplo, na década de 2030 será a sexta geração de telefonia celular. Eu já estaria trabalhando nisso. O pessoal está falando em realidade virtual aumentada holográfica. Na década seguinte, pode-se pensar em comunicação direta cérebro-máquina. A grande preocupação é a inteligência artificial assumir situações tendo o controle de tudo porque vai aprendendo com machine learning e agindo sem sentimentos.
Como fica a desigualdade social diante desses avanços tecnológicos?
Essa é uma preocupação que coloco no livro, porque o desenvolvimento tecnológico é fortemente concentrador de riqueza. Então é preciso saber o lugar que as pessoas com pouca instrução possam ocupar no futuro, precisamos de uma cruzada definitiva pela educação. E isso envolve a necessidade permanente de ter renda mínima. O auxílio que tivemos durante a pandemia, por exemplo, teria que ser permanente. Resolver essa situação envolve uma mudança drástica no sistema econômico. [Se nada for feito], no futuro, você vai ter uma classe alta extremamente rica e o resto da população na classe média para baixo, uma sociedade de castas. Infelizmente a tecnologia é concentradora de renda e de poder.
Assista ao vídeo da entrevista com João Antonio Zuffo
Foto do destaque na matéria: João Antonio Zuffo. Crédito: Acervo pessoal