Álvaro Rodrigues dos Santos*
Como um “carma” já internalizado pela sociedade brasileira, especialmente por suas autoridades públicas e privadas e por sua mídia, repetem-se anualmente à época das chuvas mais intensas as tragédias familiares com terríveis mortes provocadas por deslizamentos e enchentes. A dor e o sofrimento causados por essas tragédias expressam uma crueldade ainda maior ao entendermos que poderiam ser plenamente evitadas.
Predominantemente os desastres mais comuns e fatais estão vinculados a ocupações de encostas de média a alta declividades, margens de córregos e áreas alagáveis pela população pobre de nossas grandes e médias cidades.
Para uma mais precisa compreensão do problema e para o correto equacionamento de sua solução, é indispensável considerar separadamente dois aspectos fundamentais, mas bem diversos, dessa questão; os fatores técnico e político-socioeconômico.
Sobre o primeiro, vale afirmar categoricamente que não há uma questão técnica sequer relacionada ao problema que já não tenha sido estudada e perfeitamente equacionada pela geotecnia brasileira (Engenharia Geotécnica e Geologia de Engenharia), com suas soluções resolvidas e disponibilizadas, tanto no âmbito da abordagem preventiva como da corretiva e da emergencial. Cartografia Geotécnica, Cartas de Risco, Sistemas de Alerta Meteorológico, metodologia e tecnologia de Planos Contingenciais de Defesa Civil, tipologia de obras de contenção e drenagem adequadas ao caso, e tudo o mais que se refere à questão são parte do ferramental que o meio técnico brasileiro abundantemente já produziu e disponibilizou à sociedade para o enfrentamento do problema.
No que concerne aos componentes sociais, políticos e econômicos do problema, é essencial ter em conta que a população mais pobre, compelida a buscar soluções de moradia compatíveis com seus reduzidos orçamentos, tem sido compulsoriamente obrigada a decidir-se jogando com seis variáveis, isoladas ou concomitantes: grandes distâncias do centro urbano, áreas de periculosidade, áreas de insalubridade, irregularidade imobiliária, desconforto ambiental, precariedade construtiva. Somem-se a isso loteadores inescrupulosos, total ausência da administração pública, inexistência de infraestrutura urbana, falta de sistemas de drenagem e contenção e outros tipos de cuidados técnicos etc.. Ficam, assim, diabolicamente atendidas as condições necessárias e suficientes para a inexorável recorrência de nossas terríveis tragédias geotécnicas. Ou seja, em que pese a necessidade de os serviços públicos melhorarem em muito sua eficiência técnica e logística no tratamento do problema “áreas de risco”, não há como se pretender resolver essa questão somente através da abordagem técnica.
A questão também remete pesadamente para a necessidade de programas habitacionais mais ousados e resolutivos, que consigam oferecer à população de baixa renda moradias próprias dignas e seguras na mesma faixa de custos em que ela só tem encontrado nas situações de risco referidas.
Documentos cartográficos e operacionais imprescindíveis na Gestão de Áreas de Risco
Carta Geotécnica – Traz informações sobre todas as feições geológicas e geomorfológicas de uma determinada região quanto ao seu comportamento geotécnico frente às solicitações típicas de um determinado tipo de ocupação. É essencialmente um instrumento de planejamento do uso do solo. As mais comuns são as Cartas Geotécnicas (CGs) orientadas à ocupação urbana. Definem as zonas que não podem ser ocupadas de forma alguma e aquelas que podem ser ocupadas uma vez obedecidos os critérios técnicos estipulados pela própria Carta. Deve ser produzida em escalas na faixa de 1:5.000 a 1:2.000.
Carta de Riscos – Delimita em uma área ou região as zonas ou os compartimentos submetidos a um determinado tipo de risco (por exemplo, escorregamentos) frente a um determinado tipo de ocupação (por exemplo, urbana), definindo os diferentes graus de risco e as providências necessárias associadas a cada um. Geralmente é realizada para uma situação já com problemas detectados ou ocorridos, e é mais comumente um instrumento de ações corretivas e emergenciais de Defesa Civil e/ou reorganização da ocupação. Deve ser produzida em escala 1:2.000.
Mapa de Geodiversidade – É um documento cartográfico de macroplanejamento regional produzido em escalas na faixa de 1:1.000.000 a 1:250.000 que expõe a diversidade geológica-geomorfológica-pedológica dos terrenos e os processos de dinâmica externa a que estão submetidos.
Carta de Suscetibilidade a Movimentos Gravitacionais de Massa e Inundações – É um documento cartográfico de planejamento de uso do solo e gestão de riscos produzido na escala 1:25.000 que mostra as diferentes suscetibilidades das regiões municipais à ocorrência de deslizamentos e inundações.
Plano de Contingência de Defesa Civil – Estabelece as ações de proteção e defesa civil em caso de previsão de ocorrência de eventos pluviométricos extremos, elencando e organizando as ações de preparação e resposta que órgãos de proteção civil e população devem adotar a partir de combinados sinais de alerta.
Áreas de risco: quando desocupar, quando consolidar
Em que pese a fundamental importância de medidas preventivas de planejamento urbano (Carta Geotécnica, programas habitacionais), as únicas capazes de evitar a instalação de áreas de risco, há que se considerar o imenso passivo de erros já cometidos, e muitas áreas de alto risco geológico-geotécnico já estão instaladas, assim como, pela absurda inadequação técnica das formas de ocupação, muitas áreas geologicamente compatíveis com a ocupação urbana também apresentam generalizada presença de situações de risco instaladas. Esse enorme passivo geotécnico urbano impõe a necessidade de intervenções urbanísticas de caráter corretivo e emergencial voltadas a eliminar ou ao menos reduzir drasticamente a possibilidade da ocorrência de novas tragédias geotécnicas.
Essas intervenções urbanísticas eliminadoras de riscos geológico-geotécnicos exigem dos geotécnicos (geólogos de engenharia e engenheiros geotécnicos) uma primeira decisão essencial diante das diferentes situações que lhes são colocadas: o que seria mais indicado, a desocupação da área ou sua manutenção como área urbana via obras de consolidação geotécnica?
De qualquer modo, o instrumento indispensável para dar suporte a esse tipo de decisão é a Carta de Riscos, com a qual são caracterizados os subsetores de uma determinada área segundo seus diferentes graus de risco (internacionalmente são definidos quatro: baixo, médio, alto e muito alto). No entanto, os critérios para, a partir da Carta de Riscos, chegar-se à decisão sobre quais subsetores desocupar e quais consolidar ainda não estão devidamente estabelecidos ou consensuados na geotecnia brasileira e internacional, tendo na prática prevalecido o bom senso dos profissionais envolvidos. Se sua confiabilidade não é desprezível, há consciência de que o simples bom senso não é suficiente, e deva-se chegar a uma definição mínima de critérios norteadores de tais decisões. Consideremos alguns elementos que possam auxiliar a avaliação de fatores essenciais na boa solução desse dilema, em especial tendo em conta nossas regiões serranas com altos índices de pluviosidade, as margens de cursos d’água e as áreas inundáveis.
Faz-se fundamental, nesse objetivo, a perfeita distinção entre riscos natural, ou seja, determinado pelas condições naturais do terreno ocupado, e induzido, aquele originado ou potencializado por intervenções antrópicas diretas ou indiretas.
Entre os subsetores classificados em risco geológico natural muito alto ou alto (Graus 4 e 3), há os originalmente impróprios e outros que podem ser passíveis de ocupação urbana.
Os primeiros, por suas características geológico-geotécnicas e hidrológicas originais, não seriam de forma alguma liberados para a ocupação urbana, devem ser inquestionavelmente desocupados, com a população reassentada, sem custos extras para as famílias, em áreas seguras. Não há sentido algum adaptar para a ocupação urbana, via obras de consolidação geotécnica, um setor já naturalmente instável do ponto de vista geológico, geotécnico e hidrológico. É válido também considerar como elemento reforçador da decisão de desocupação urbana de uma determinada área a intenção de marcar um fato simbólico/cultural/educativo para a sociedade, ao evidenciar que áreas com aquela similaridade geológica ou hidrológica não devem e não podem ser ocupadas.
Já os segundos, se utilizadas as técnicas adequadas, poderiam ser ocupados, mas se tornaram um canteiro de áreas de risco pela adoção de técnicas construtivas as mais inadequadas. Depreende-se que os riscos existentes foram provocados por erros técnicos na ocupação, com destaque à temerária sucessão de cortes e aterros para produção de patamares planos, desmatamento com plantio de roças, desorganização da drenagem, instalação de fossas de infiltração, disposição de lixo e entulho, assoreamento e estrangulamento de córregos etc.. A decisão de desocupação ou manutenção da ocupação urbana destes exigirá uma avaliação setorial e caso a caso (edificação a edificação) e dependerá de um balanço custo/benefício. No caso da análise sectorial, devem ser cotados os custos totais da consolidação geotécnica capaz de dotar a área de segurança geotécnica e os custos necessários para reassentar seus moradores em habitações situadas em áreas seguras.
Na análise caso a caso, os custos de consolidação necessários para especificamente dotar aquela edificação de segurança geotécnica e hidrológica e os custos envolvidos em sua remoção. Algumas questões devem ser tidas em conta nessa ponderação:
- é comum o cenário em que apenas algumas remoções individualizadas propiciam uma economia considerável, capaz de justificar financeiramente a opção pela manutenção da ocupação urbana via obras e serviços de consolidação geotécnica;
- uma área que é desocupada demandará algum serviço de estabilização geotécnica e posteriores serviços de reflorestamento, o que a guindará a uma condição de área urbana florestada, aos moldes de uma Área de Preservação Permanente (APP). Ou seja, uma área desocupada não pode ser simplesmente abandonada, exigirá algum tipo de intervenção, e isso tem algum custo;
- em uma decisão de manutenção da ocupação urbana sempre se deverá dar preferência a obras leves e simples de consolidação voltadas à inibição do principal fator imediato dos deslizamentos, qual seja a saturação dos solos (com destaque para os serviços de impermeabilização, drenagem superficial e profunda, eliminação de fossas e lixões etc.). Obras de consolidação mais sofisticadas e de grande porte, além de muito dispendiosas, normalmente exigem trabalho de maquinário pesado e intervenções na geometria das encostas, o que não é aconselhável.
Por sua vez, entre os subsetores classificados em risco geotécnico natural ou induzido médio e baixo (Graus 2 e 1), ressalvados casos raros e isolados em que se justifique decidir pela remoção de uma ou outra edificação, é natural prevalecer a decisão de manutenção da ocupação urbana, considerando a baixa exigência de obras de consolidação geotécnica e seu natural baixo custo. Frente à necessidade presente de acomodar moradores cujas moradias tenham já sido destruídas ou que estejam em áreas que serão desocupadas, é aconselhável avaliar a oportunidade de intervenções urbanísticas que possam viabilizar condições seguras e socialmente dignas de adensamento populacional nesse tipo de subsetor.
A tabela a seguir resume e organiza as ações propostas:
Álvaro Rodrigues dos Santos é geólogo, ex-diretor de Planejamento e Gestão do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), consultor em Geologia de Engenharia e Geotecnia, autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A grande barreira da Serra do Mar”, “Diálogos geológicos”, “Cubatão”, “Enchentes e deslizamentos: Causas e soluções”, “Manual básico para elaboração e uso da Carta Geotécnica”, “Cidades e Geologia”
Fotos: Destaque - Carla Carniel/Agência Brasil - Arte: Eliel Almeida / Álvaro Rodrigues dos Santos: Portal ABGE