Rita Casaro
Temor de perder o emprego, sobrecarga de tarefas, metas inatingíveis, relações hostis com chefes e colegas, jornadas infindáveis devido à conexão permanente pelo smartphone, clima de competição e contratos precários. Tais situações estão listadas entre as causas dos adoecimentos ligados ao trabalho, entre os quais, constam ansiedade generalizada, síndrome do pânico, esgotamento ou burnout, estresse pós-traumático e depressão, que podem levar a situações extremas como o suicídio.
Esse quadro assustador e nada condizente com a ideia de realização profissional, assim como os caminhos para preveni-lo e combatê-lo, é o objeto da cartilha “Eu preciso falar: a violência no trabalho”, lançada pelo Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho (Diesat).
Nesta entrevista ao Jornal do Engenheiro, Eduardo Bonfim, coordenador técnico da instituição, e as pesquisadoras em Saúde do Trabalhador Josi Sales e Patrícia Marafon alertam para a gravidade dessa realidade, também evidente pelos números. Entre 1999 e 2020, foram mais de 254 mil notificações de transtornos mentais relacionados à atividade laboral.
Ainda, segundo dados do Ministério da Saúde, só em 2022 foram mais de 2.100 casos. As principais vítimas são as mulheres, que somam 66% das ocorrências. Em relação à faixa etária, o volume maior está entre 30 e 49 anos, atingindo adultos em plena fase produtiva.
Acesse aqui a cartilha “Eu preciso falar: violência no trabalho”
Reverter esse quadro, afirmam Bonfim, Sales e Marafon, exige informação clara e precisa, campanhas de esclarecimento e ações efetivas de promoção da saúde integral do trabalhador em convergência com as políticas públicas. Nessa batalha, defendem, os sindicatos têm papel primordial e lhes cabe a tarefa de compreender as situações pelas quais passam integrantes da categoria, promovendo ações de acolhimento, além da luta por melhorias no ambiente ocupacional. Confira a seguir e no vídeo ao final.
O Diesat acaba de lançar a cartilha “Eu preciso falar: a violência no trabalho”. O que motivou essa iniciativa e como foi desenvolvida?
Josi Sales: Diante dessa metamorfose no mundo do trabalho, os impactos são vivenciados diariamente pelos trabalhadores. [Um fator foi] a reforma trabalhista (implantada em 2017), que flexibilizou ainda mais as contratações de trabalho, abrindo margens a diversos tipos e perdas de direitos. Um dos motivos [para a elaboração da cartilha] foi o relato dos trabalhadores, ao longo dos anos de existência do Diesat, [além das] altas taxas de desocupação, os empregos precarizados que acarretam adoecimento. As consequências da violência do mundo do trabalho se refletem na saúde mental do trabalhador e da trabalhadora. Acontecem várias campanhas, como o “Janeiro Branco” e o “Setembro Amarelo”, que são voltadas à saúde mental dos trabalhadores, mas o Diesat realiza trabalhos e publicações sobre essa temática durante o ano todo.
Como é essa realidade da violência psicológica no trabalho e como ela se manifesta no cotidiano?
Patrícia Marafon: Vivemos num país onde historicamente o trabalho [é visto] como o que edifica o homem. [Como diz o ditado], “Deus ajuda quem cedo madruga”. Falar de violência psicológica no trabalho ainda é um tabu. Não só os empregadores, mas os próprios trabalhadores não conseguem perceber que estão adoecendo. A gente precisa
olhar para o contexto em que vive e, historicamente, para essa cultura que se tem sobre a violência psicológica no trabalho. Ela se manifesta pela sobrecarga de trabalho e pressão por metas [, por exemplo]. Tudo isso a gente sabe que acaba acarretando não só o adoecimento psíquico dos trabalhadores, mas se transforma num adoecimento físico muitas vezes. Precisa olhar onde o trabalhador está inserido e a cultura organizacional que essa empresa tem. Temos uma Cipa (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes), um psicólogo dentro da empresa? [Há] ações de prevenção e de educação sobre o que é a violência psicológica no trabalho,[que esclareçam o que é] burnout, assédio moral e sexual? A gente abre a discussão de um leque muito vasto quando vai falar da violência psicológica no mundo do trabalho. Não é algo específico e isolado, e muitas vezes o trabalhador não percebe. “Como é que esse espaço que me edifica, que me torna sujeito, causa sofrimento?” Uma das coisas é o suicídio, que é um tabu. Nós precisamos trazer isso para dentro das empresas como uma forma de educação dos nossos trabalhadores, com campanhas. E aí também entra o papel fundamental dos sindicatos de orientar os seus trabalhadores. A gente só vai conseguir desmistificar esse tabu da saúde mental, do suicídio, se acolher os nossos trabalhadores, passar a ouvi-los de fato. Não é só falar de reajuste salarial, muitas vezes é preciso saber como é que está o filho daquele trabalhador, a família. É se aproximar para conhecer também o universo em que ele está vivendo, para se sentir acolhido e, diante de uma situação de adoecimento, se sentir tranquilo em manifestar ao seu empregador.
Há estatísticas sobre os problemas de violência psicológica no trabalho?
Josi Sales: Temos dados, e as estatísticas são muito altas, infelizmente. Segundo a Previdência Social, foram notificados nas Comunicações de Acidentes de Trabalho (Cats), entre 1999 e 2020, mais de 254 mil transtornos mentais relacionados ao trabalho. Segundo dados do Ministério da Saúde, só no ano de 2022 os casos foram mais de 2.100. E eles são muito mais evidentes nas mulheres, que correspondem a 66% das notificações, sendo 33%, aproximadamente, no sexo masculino. Recai sobre a mulher o excesso da jornada de trabalho, muitas vezes dupla, e com esse trabalho que não é reconhecido ou valorizado, o cuidado com a família, a casa, os idosos, as crianças. A faixa etária de maior ênfase ocorre entre 30 e 49 anos. É uma idade muito produtiva, então tem-se um impacto muito grande. Esses números [referem-se] à saúde de pessoas, mas se refletem em toda a família, em quem vive ao redor daquela pessoa, tanto no ambiente familiar quanto no trabalho.
Pode-se considerar que há subnotificação, tendo em vista a informalidade?
Josi Sales: Com certeza, porque quando falo de CAT é uma comunicação de trabalhadores formais. E os informais, a quem recorrem? Com certeza à nossa rede de atenção à saúde que é o SUS (Sistema Único de Saúde), mas, para além disso, estão por conta própria, sem assistência previdenciária.
Como promover a saúde integral no trabalho, e não apenas a chamada saúde ocupacional?
Eduardo Bonfim: Quando nós pensamos em discutir a saúde do trabalhador e da trabalhadora, é na verdade um grito da nossa representação enquanto classe a toda essa violência que nós vivenciamos em todas as atividades econômicas. Nós estamos falando aqui da centralidade que o trabalho tem em nossas vidas, porque determina nosso modo de sobrevivência. Que tipo de cultura, acesso à saúde, moradia e transporte nós temos? Por exemplo, recentemente tivemos da cidade de São Paulo a paralisação dos metroviários. Qual é o impacto sobre as pessoas de tentar chegar ao local de trabalho? E aí o empregador sobrepõe a meta, o desafio. Estamos falando aqui em 2023, mas na gênese da nossa entidade, no final da década de 1970, eram mais de 2 milhões de trabalhadores adoecidos ou acidentados. Isso tudo já daquele período vem como um boom de inquietudes, indignações, de cansaço da nossa parte, trabalhadores e trabalhadoras. Naquele período, o movimento sindical clamou por melhores condições. Por isso, organizou as Semanas de Saúde do Trabalhador e, destas, criou-se o Diesat. Ao longo da nossa história de transformação e de luta, construímos o Sistema Único de Saúde como forma de promover a saúde, discutir essa situação de prevenir o adoecimento e toda essa violência. Com isso, dissemos que precisávamos de uma política nacional de saúde do trabalhador e da trabalhadora. A questão da violência no trabalho não se restringe à doença ocupacional, ela se amplia a toda a violência urbana e a toda essa descaracterização social em que os piores postos de trabalho têm cor, e a gente não discute o racismo institucionalizado. Discutir a violência existente no mundo do trabalho é discutir o racismo, a questão de gênero. São várias as violências e nós, na saúde do trabalhador, contra-argumentamos toda essa situação. Por isso que é fundamental nos apropriarmos da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora, da Política Nacional de Vigilância em Saúde. Não tem o saber congelado como receita de bolo, e sim uma discussão pactuada por nós todos para enfrentarmos essa violência do mundo do capital. E aí o Diesat vem nessa perspectiva, mesmo numa gangorra de sobrevivência, porque a saúde do trabalhador ainda não é prioridade, o SUS não é prioridade. Por isso que a gente tem que dar uma puxada de orelha nos nossos camaradas, nos nossos companheiros, nas nossas companheiras, porque você tem a culpabilização do trabalhador de maneira individual. Quando nós discutimos a promoção e a prevenção da saúde, significa o enfrentamento dessa violência, significa implementar as políticas públicas, significa uma identidade de classe. E é isso que a gente tem tentado com todas as ações do Diesat ao longo desses 43 anos. A primeira pesquisa de saúde mental feita pelos trabalhadores, não pela academia, foi desenvolvida pelo Diesat em 1984. Ou seja, naquele período já se discutia a violência mental em decorrência do capitalismo selvagem, como diriam os Titãs.
Hoje há mais problemas de saúde mental no trabalho ou a questão apenas ganhou mais visibilidade?
Patrícia Marafon: Estamos vivendo agora o mundo pós-pandemia. Na pandemia, quem teve o acesso e a possibilidade trabalhou em home office. Então essa sobrecarga de atividades também se deu com a pandemia. Quando a gente vem falando das tecnologias, desse avanço que se teve, foi bom, esse boom auxiliou, mas, da mesma forma, aumentou muito o índice de adoecimento mental e pressão pelo trabalho. Muitas vezes, o trabalhador sai do seu trabalho fisicamente, mas não se desconecta, não sai do celular, continua respondendo ao supervisor no WhatsApp, respondendo a e-mail. Por isso [batemos] nessa tecla da educação, da promoção de saúde, para a gente conseguir olhar para o trabalhador, para aquele sujeito enquanto ser humano. Ele não pode sair do trabalho e continuar respondendo ao chefe. E como a gente consegue desconstruir isso neste mundo que está cada vez com maior sobrecarga e mais corrido? Olhando para esse cenário, [é preciso] trazer os sindicatos e os movimentos sociais para as discussões desses temas, para conhecerem essa realidade, entenderem o que é adoecimento mental, a violência psicológica, o assédio moral e sexual no trabalho. Os trabalhadores muitas vezes estão sofrendo e não estão enxergando; não se desconectar gera ansiedade, síndrome do pânico, insônia.
Josi Sales: O home office tem distanciado esse trabalhador do seu espaço, dos seus colegas. Acaba isolando esse trabalhador, e isso também gera um adoecimento, porque ele fica sem as redes de apoio do trabalho. Temos que procurar estratégias de promoção, de agregar esses trabalhadores e pensar como essas modalidades, as novas formas, estão adoecendo cada vez mais o trabalhador. Quais são as estratégias que nós, nos movimentos sindical e sociais, podemos usar? Um dos caminhos são as ações de informação de comunicação de fácil entendimento para os trabalhadores; de forma clara, direcionada a cada categoria.
Eduardo Bonfim: A Organização Mundial da Saúde [divulgou que], no período pré-pandemia, 1 bilhão de pessoas em todo o mundo, incluindo adolescentes, vivenciaram alguma situação de transtorno mental. E dessa quantidade de pessoas, qual é a possibilidade de dimensionar o que isso tem de impacto advindo do mundo do trabalho, uma vez que discutir isso perpassa por tantas situações? Parece que a gente adoece porque tem o Big Brother Brasil, porque tem o Corinthians que não está ganhando, e não em decorrência da violência do trabalho. Outro dado extremamente importante, recentemente divulgado também pela OMS, é que o Brasil, nos últimos anos, lidera essa questão dos maiores casos de ansiedade no mundo. Com a naturalização dessa violência, o burnout e a saúde mental hoje em dia estão virando chacotas, um fator que nos entristece, nos individualiza, nos culpabiliza e nos separa. Por isso que discutir a saúde do trabalhador e da trabalhadora – tem que corrigir sempre, porque isso também já é uma violência, não existe igualdade entre homens e mulheres – é discutir a saúde ocupacional, a medicina do trabalho e tudo isso que vocês entendem das situações vivenciadas nas quatro paredes e no contexto social, além dessa violência advinda do trabalho. Esse é o enfrentamento. E, para isso, o movimento sindical tem um papel ímpar de ocupar os espaços coletivos. Por exemplo, quantos e quantas de nós sabemos que podemos ocupar os Conselhos Municipais de Saúde? Que comissões existem que discutem saúde do trabalhador? Então veja, a gente faz a discussão micro e a discussão macro, e todas elas entrelaçadas. Por isso, a gente convida os engenheiros e as engenheiras a estarem conosco nas discussões que o Diesat vem desenvolvendo. Sem processo de formação e orientação, nós ficamos desinformados, e é isso que esse capitalismo selvagem quer: pessoas chocadas, em vez de unidas. Parece muito filosófico, mas no fundo é uma concretude necessária que precisamos unir forças aqui para discutir sem receios e com enfrentamentos.
Quais os caminhos para o enfrentamento dos abusos e também de ação para as empresas que queiram promover a saúde mental dos trabalhadores?
Rede Margarida. É um espaço que tem diversas categorias discutindo exatamente transtornos mentais e suicídio.
Eduardo Bonfim: Na nossa cartilha, tem como o trabalhador e a trabalhadora poderem soltar a voz nesse aspecto, temos os caminhos que denunciam essa violência psicossocial que temos vivenciado em cada um dos tipos de trabalho. No individual, na cartilha, tem toda uma orientação. Primeiro poder identificar: “Será que eu estou sendo vítima, sofrendo assédio?”. Se, no segmento dos engenheiros, a gente sofre, onde pode denunciar? Tem o Ministério Público do Trabalho. Há o papel importantíssimo da nossa representação de classe, o sindicato tem que ser um espaço de acolhimento desses trabalhadores, nós temos que desenvolver rodas de conversa, espaços de compartilhar toda essa situação. O Sindicato dos Engenheiros pode desenvolver ações com o Diesat, através das formações, estudos, pesquisa. O Diesat está aqui para isso, tem esse material para poder ajudar no que for preciso. Vem participando com a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e o Ministério Público do Trabalho da
Patrícia Marafon: Faz refletir também a questão das empresas. Quando a gente contrata um trabalhador, pergunta quais os objetivos, o que ele pensa. É fundamental que quando está com ele no dia a dia, também busque dialogar e [atuar] internamente, com campanhas, cartilhas, panfletos, nas redes sociais, fazer a divulgação sobre a saúde mental, sobre aspectos de prevenção e como promovê-la dentro das empresas. É fundamental que a gente possa alimentar [esses canais] como gestores e empregadores. Além do externo, olhar para dentro também.
Josi Sales: É necessário que haja essa compreensão dos fenômenos que desencadeiam tanto o sofrimento físico quanto psíquico dos trabalhadores. É informação para a ação. Quanto mais acesso ao conhecimento, melhor para o trabalhador, ele vai saber identificar em si ou nos seus colegas o tipo de sofrimento que esteja sendo desencadeado dentro do espaço do trabalho. É preciso ocupar os espaços do controle e participação social. O trabalhador, juntamente com as comissões intersetoriais de saúde, Centros de Referência de Saúde do Trabalhador, pode fazer ações de promoção da saúde.
Saiba mais sobre os entrevistados
Eduardo Bonfim – Pesquisador e coordenador técnico do Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho (Diesat). É administrador e especialista em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
Patrícia Marafon – Pesquisadora em Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora e técnica do Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho (Diesat). É psicóloga e mestre em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais, pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó)
Josilene Sales – Pesquisadora em Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora e técnica do Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho (Diesat). É sanitarista, bacharel em Saúde Coletiva pela Universidade de Brasília (UnB)
Assista ao vídeo da entrevista