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Superar o individualismo e recuperar a luta coletiva

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Rita Casaro

MarilaneOliveiraTeixeira AntonioScarpinettiMarilane Teixeira: reforma precarizou o trabalho; hoje são 26 milhões no mercado informal, sem direitos. Foto: Antonio Scarpinetti/UnicampDécadas de neoliberalismo e pregação em defesa do Estado mínimo, mudanças na organização das empresas que incentivam a competição entre funcionários em detrimento de solidariedade e cooperação, consumismo exacerbado e ascensão da financeirização e das plataformas digitais que acabam por reduzir o contato pessoal entre as pessoas. Esse pacote observado desde os anos 1990, analisa a professora e economista Marilane Teixeira, contribui para um cenário contemporâneo de grande dificuldade à luta coletiva por democracia e melhores condições de vida.  

 

“Para quê você precisa trocar o celular e o computador a cada seis meses? A felicidade é vendida a partir da aquisição desses bens materiais que todas as pessoas gostariam de ter porque acham que a felicidade está neles, então você vai se individualizando, vai perdendo a noção do coletivo”, reflete.

 

Doutora em Ciência Econômica e pós-doutora em Desenvolvimento Econômico e Social pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/Unicamp), além de pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), ela vislumbra grandes desafios ao movimento sindical, fragilizado por essa conjuntura e atingido gravemente pela reforma instituída pela Lei 13.467/2017. Esta retirou direitos e criou obstáculos à representação dos trabalhadores, favorecendo também o acirramento do discurso antissindical, o que tornou ainda mais difícil equilibrar a balança na relação capital-trabalho.

 

Nesta entrevista ao Jornal do Engenheiro, ela faz um retrospecto dos problemas que trouxeram as entidades sindicais ao presente impasse e aponta caminhos para superá-los. “Tem que ser organizado na base, sentir quais são as demandas dos trabalhadores e negociar coisas reais e concretas que fazem sentido no seu dia a dia”, defende. Confira a seguir e no vídeo ao final.

 

 

Existe entre as pessoas e organizações engajadas nas lutas coletivas uma certa angústia devido à percepção de um crescente individualismo na sociedade que dificulta a mobilização. Esse fenômeno é real? O que o explica?

Nós, que acompanhamos o movimento sindical e a organização da classe trabalhadora, começamos a perceber essa mudança lá nos anos 1990, uma década em que o neoliberalismo entrou com muita força na sociedade brasileira. Houve todo aquele processo de abertura, globalização, desestruturação do mercado de trabalho, desorganização de várias cadeias produtivas, fechamento de empresas e perda de dinamismo num setor fundamental, que é a indústria, que sempre foi referência, inclusive com sindicatos mais estruturados, que protagonizaram as principais lutas da classe operária nos anos 1970 e 1980. E houve uma fragmentação muito grande, com novas formas de contratação decorrentes [das mudanças na] organização da atividade produtiva. Cresce a terceirização, as empresas passam a externalizar parte dos processos de produção. Então a gente percebe que os sindicatos vão perdendo a capacidade de organização. Tem dois fenômenos que ocorrem de forma simultânea: perda de representação e de representatividade. A de representação se dá pela redução das bases sindicais. Por exemplo, nos anos 1990, o Sindicato de Químicos, Plásticos e Farmacêuticos da Cidade de São Paulo representava 100 mil trabalhadores; hoje tem menos de 50 mil, reduziu pela metade. A perda de representatividade [se dá] justamente por esse processo de fragmentação que faz com que uma parte dos trabalhadores não seja necessariamente vinculada a um sindicato. São os terceiros, por conta própria, autônomos, PJ, uma infinidade de formas de contratação que se reúnem dentro do mesmo ambiente de trabalho, mas que estão fragmentadas. Alguns nem sindicatos têm, e aqueles que permanecem com a sua representatividade vinculada ao sindicato da atividade predominante vão perdendo referência [devido] às mudanças no processo de trabalho, que passa a ter metas individualizadas [por exemplo]. Essas formas de remuneração variável, vinculadas a desempenho individual, vão afastando o trabalhador do seu sindicato. Quando a gente olha esse processo todo, também começa a perceber que isso está em toda a sociedade. A organização sindical é só uma das expressões de como as mudanças que se operam a partir dos anos 1990 vão tomando conta de todas as dimensões da nossa vida.  

 

Ao longo dessas décadas de neoliberalismo, houve também o avanço das tecnologias de informação e comunicação, extremamente relevantes na vida contemporânea. Isso também tem relação com essa mentalidade?

Esses processos são absolutamente decisivos e definidores deste momento que nós estamos vivendo. Quando você percorre essas últimas três décadas, observa o quanto de mudanças ocorreram nesse período. Ao mesmo tempo em que nós estamos nos inserindo globalmente, estamos sob a égide de uma hegemonia neoliberal e de uma pressão cada vez maior pelo Estado mínimo. Os processos de privatização são o resultado disso, mas também a financeirização que está em todas as esferas e que prescinde, inclusive, do próprio trabalho, porque é dinheiro gerando dinheiro. Isso faz com que, mesmo em períodos de crescimento econômico, formalização, melhoria das condições de vida, crie-se JE589 EntrevistaDestaques 01na sociedade uma certa frustração de o Estado não conseguir dar conta das políticas essenciais, como saúde, educação, assistência, mobilidade etc..Essa frustração é associada ao discurso neoliberal de que o Estado gasta mal, que é corrupto, e isso vai se introjetar porque você tem mecanismos cada vez mais sofisticados de reproduzir esse discurso. Se há 30 anos você tinha apenas uma grande mídia, que era a Globo, a Bandeirantes e a Record, que tratavam de reproduzir esses valores num determinado horário, na telinha, hoje, com o avanço da tecnologia, as redes sociais e o uso do celular, você é bombardeado permanentemente por essa ideologia. Ela chega de todos os lados. Eu acho que a maior parte das pessoas só se informa por meio desses instrumentos e vai também acompanhando mudanças. Essa geração dos anos 1990 e 2000 não tem a menor ideia do que era o mundo do trabalho que vivenciaram seus pais e avós. Nós estamos vivendo um momento muito complexo. Quando você compara, por exemplo, o que eram os bens indispensáveis há 30 ou 40 anos, cresceu enormemente o volume de coisas que são produzidas só para troca, só servem para acumular. Para quê você precisa trocar o celular e o computador a cada seis meses? A felicidade é vendida a partir da aquisição desses bens materiais que todas as pessoas gostariam de ter porque acham que a felicidade está neles, então você vai se individualizando, vai perdendo a noção do coletivo. No ambiente de trabalho, a disputa e a concorrência são favorecidas pela cultura organizacional que hoje só valoriza a individualidade. Aquelas métricas associadas ao trabalho em equipe são simplesmente desprezadas. E o trabalho nessas gerações mais jovens perdeu a centralidade. As pessoas se realizavam por meio do trabalho, hoje elas se realizam por meio do consumo. Então, por isso: “Ah, por que eu vou trabalhar como celetista dentro de um enquadramento que eu tenho que cumprir jornada, tenho hierarquia, com salário baixo, se eu posso trabalhar como Uber, no e-commerce, oferecer as minhas habilidades por meio da internet para vender serviços, facilidades?”. E essa ideia de que com isso tenho mais liberdade, vou ganhar mais dinheiro contaminou a sociedade de uma maneira que vão se esfacelando todas as formas de organização coletiva. Relações de pertencimento, solidariedade e empatia, tudo isso vai se perdendo, porque as redes promovem justamente o individualismo.

 

A reforma de 2017 foi um ataque violento ao movimento sindical, mas principalmente contra os trabalhadores. Por que foi impossível convencer a sociedade de que se tratava de um mau passo?

O contexto da reforma trabalhista era muito complexo, porque o projeto é enviado ao Congresso num ambiente em que o movimento sindical brasileiro, as centrais sindicais, que eram as protagonistas, estavam relativamente divididas em relação ao cenário econômico-político. A primeira versão do projeto, [que tinha pouco mais de dez itens], foi apoiada por algumas centrais sindicais, que inclusive participaram da entrega. De repente, em poucos meses, eram mais de 200 dispositivos; foram apresentadas mais de 900 emendas e 99% das que foram incorporadas vieram do setor empresarial. Tinha uma ilusão de parte do movimento sindical de que não se mexeria na sustentação financeira e que se daria mais espaço para negociação coletiva, e isso fortaleceria os sindicatos à mesa de negociação. À medida que as emendas foram sendo aprovadas, obviamente abriu-se o que era de fato a reforma trabalhista, mas até então o movimento sindical [expressou] poucas reações, algumas importantes, mas muito aquém do que poderia ser o protagonismo naquele momento. Já em 2017 tivemos a lei da terceirização aprovada, que foi um desastre. Por que o movimento sindical não conseguiu mobilizar a sociedade para a reforma trabalhista? Acho que, primeiro, porque uma parte não compreendeu completamente o que significavam todos os dispositivos que estavam sendo alterados. Os sindicatos e as centrais sindicais não conseguiam dialogar e mostrar aos trabalhadores e às trabalhadoras qual era o impacto disso na sua relação de trabalho, no seu cotidiano. E, por outro lado, a grande mídia, o governo e os liberais tomaram conta do debate. Nós tivemos uma redução do PIB de 7,5%, estávamos com uma taxa de desemprego altíssima. Então era muito fácil vender essa ideia de que a reforma trabalhista era absolutamente necessária, porque era o único mecanismo possível para conseguir recuperar os níveis de emprego.

 

Obviamente essas promessas de melhorias não se confirmaram, e restaram a retirada de direitos e as dificuldades para a representação sindical.

Os impactos são tremendos. A partir de 2017, você tem uma redução do emprego assalariado com carteira e um crescimento da pejotização, do trabalho por conta própria, que ajuda a crescer esse mercado informal, sem direitos. Hoje são 26 milhões de pessoas trabalhando por conta própria, e 75% delas não contribuem com a Previdência Social. E há a questão da sustentação financeira [das entidades sindicais]. Até hoje, embora já tenha acordo entre as centrais, você não consegue enviar uma proposta porque não sabe exatamente o ambiente em que isso vai se dar. A tendência, com um Congresso liberal, conservador, antissindical e antipovo, é que se aprove algo totalmente contra, não tem nem ambiente político para debater isso, porque é um Congresso antiorganização dos trabalhadores. Então, a qualquer coisa que vá no sentido de reforçar e fortalecer a organização dos trabalhadores, vamos ter um ambiente absolutamente desfavorável do ponto de vista do Congresso, mesmo com o governo apoiando. É um cenário muito difícil.

 

O que o movimento poderia e deveria fazer para reverter esse clima antissindical?

JE589 EntrevistaDestaques 02São vários caminhos. Um deles é o movimento sindical, principalmente as centrais sindicais que têm um papel muito importante, recuperar uma agenda mais pró-trabalho. Elas estão muito distanciadas das relações de trabalho. Por exemplo, geração de emprego é absolutamente essencial e deveria ser um dos principais motes do movimento sindical. Mas se apega a essa ideia de que estamos vivendo do pleno emprego e secundariza essa agenda. É importante porque não é pleno emprego para todo mundo. Pode ter uma taxa de desemprego baixa, por exemplo, em Santa Catarina, em torno de 3%, mas no Nordeste é mais de 10%. Para um homem branco, a taxa de desemprego é 3%, para uma mulher negra, é mais de 10%. Há 30 anos que a gente fala da redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais. Agora, o movimento do VAT, Vida Além do Trabalho, chama atenção para a escala 6 x 1, que é um absurdo e ganhou expressão nacional, o apoio da sociedade, mas o movimento sindical resiste em assumir essa bandeira com uma justificativa que é absolutamente sem sentido, que é a ideia de que muitos trabalhadores não querem alterar porque preferem trabalhar menos horas durante o dia e mais um dia da semana. O que me parece é uma certa vaidade e tem a ver com essa dificuldade que o movimento sindical tem de reconhecer que há outras formas de organização que precisam ser respeitadas. Senão o movimento sindical vai envelhecer, e essas formas de organização cada vez mais vão ser protagonistas. Nós temos um movimento sindical muito burocratizado, é [preciso] reduzir o espaço do aparelho e aumentar a presença no local de trabalho, se organizar por territórios, nos bairros, nas comunidades. Fazer mais atividade unificada com movimentos sociais e incorporar uma agenda do trabalho com mais pressão, com mais força política. A direita está lá pressionando, os empresários estão lá pressionando, se os trabalhadores não pressionarem, não é o governo que vai rever a reforma trabalhista ou definir uma nova forma de sustentação financeira. Será um movimento sindical organizado, que tem que capacidade política suficiente para pressionar o governo por essas mudanças. Mas ele tem que ser organizado na base, sentir quais são as demandas dos trabalhadores e negociar coisas reais e concretas que fazem sentido para o trabalhador no seu dia a dia. Todas as entidades que fazem isso são vitoriosas, têm sucesso e têm nível de sindicalização muito alto. O trabalhador tem confiança, tem respeito, se associa, vai no sindicato, porque ele sente que o sindicato, de fato, é uma ferramenta que ajuda na construção coletiva e na melhoria das suas condições de vida e trabalho.

 

Para além da defesa das respectivas categorias de cada entidade, qual a importância do movimento sindical para a democracia e o desenvolvimento do País? Como demonstrar isso à sociedade?

O sindicato não pode perder o seu objeto principal, que é a negociação coletiva e melhorar as condições de vida e trabalho. Isso é fundamental. Mas, cada vez mais, o trabalhador não quer só discutir salário, condição de trabalho. Ele quer discutir mobilidade, saúde, acesso à educação... Essas outras dimensões que constituem o desenvolvimento sustentável são essenciais. Não adianta você garantir melhores salários, se a saúde que ele vai acessar tem que ser privada, se não tem transporte coletivo, não tem moradia. Então também [é preciso] ter uma perspectiva de fortalecimento do Estado, da política pública. É muito importante ficar o tempo todo chamando atenção [para, por exemplo,] a taxa de juros muito alta, que tem esse impacto não só no crédito privado, mas também na possibilidade de as empresas financiarem sua atividade produtiva. Isso é uma luta nossa, [assim como] a questão do debate ambiental, da igualdade no ambiente de trabalho. Tudo isso compõe uma luta única que os sindicatos têm que protagonizar e ser capazes de fazer essa disputa na sociedade. Inclusive em defesa da democracia, lembrando que as desigualdades se acentuam nos períodos de ditadura. É nos governos progressistas que você tem a possibilidade de discutir maior igualdade salarial, melhor distribuição de renda, ganhos salariais, valorização do salário mínimo. Então não é só o slogan, não é só chamar as pessoas para ir na frente da Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo], na Avenida Paulista. É como traz tudo isso para o cotidiano e estabelece esse contato. É isso que o movimento sindical perdeu um pouco – e que fazia muito bem nos anos 1970 e 1980 –, esse link com as pessoas, o diálogo. Pelo celular, mandando mensagem ou reproduzindo imagens, é suficiente? Isso é só clichê, porque nada substitui o contato direto, nada substitui o corpo a corpo.

 

Assista ao vídeo da entrevista

 

 

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