Rita Casaro
Além de sólida formação técnica e científica, exige-se dos futuros profissionais que tenham competências como capacidade de se comunicar e trabalhar em equipe. Ainda, precisam estar atentos às demandas e tecnologias da atualidade, sendo capazes de enfrentar questões como os desafios da transição energética e da mobilidade urbana e de utilizar as ferramentas disponíveis, a exemplo da inteligência artificial e big data.
Como garantir esse padrão nos 5.344 cursos de engenharia oferecidos por 1.360 instituições de ensino no Brasil foi tema no 51º Congresso Brasileiro de Educação em Engenharia (Cobenge), realizado entre os dias 18 e 20 de setembro último, no Rio de Janeiro. “Este ano nós debatemos bastante a questão das diretrizes curriculares porque elas estão em implantação; a nova edição foi em 2019, com alteração em 2021. Também a inovação, as temáticas emergentes que estão perpassando o mundo todo, que engenheiro se pretende formar para atender ao século XXI”, resume Adriana Tonini, presidente da Associação Brasileira de Educação em Engenharia (Abenge), entidade promotora do evento, e professora do Centro de Educação Aberta e a Distância da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).
Embora já haja grande convergência sobre o perfil ideal desse profissional, reconhece ela, ainda há um longo caminho a percorrer para que a totalidade das escolas consiga implantar as estratégias e o conteúdo necessários. “A mudança tem que acontecer na sala de aula, o que envolve docentes que estão há 30, 40 anos, então mudar suas metodologias de ensino e aprendizagem é uma tarefa complexa. É você realmente quebrar paradigmas”, afirma.
Outro desafio, na avaliação da professora, é ampliar o número de graduados, hoje em 120 mil anualmente, conforme dados do Censo da Educação Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). “Nós formamos poucos engenheiros ainda, se comparar com outros países. E isso é um problema, porque vão se criando os gargalos. E acaba que poucos ficam muito solicitados, os bons engenheiros que trabalham com essas temáticas diferenciadas”, pondera.
Engenheira civil, com mestrado em Tecnologia pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, doutorado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pós-doutorado em Educação em Engenharia pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e pela University of Missouri, Tonini enfatiza a importância de uma boa formação para se colocar no mercado, mas chama atenção dos estudantes para a necessidade de estarem dispostos a empreender e buscar as oportunidades onde elas estiverem, e não só no circuito São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Nesta entrevista ao Jornal do Engenheiro, ela também destaca o anseio por maior presença feminina na profissão, nos seus diversos segmentos. “Hoje no Brasil nós formamos em torno de 28% de mulheres, mas isso se considerar todas as modalidades. Se pegar a mecânica, vai dar 2%; da computação, 5%. Na engenharia ambiental ou de produção, chega a 40% e até 50%”, informa. Confira a seguir e no vídeo ao final.
Como foi a 51ª edição do Cobenge?
O Cobenge é um evento muito rico porque traz todas as temáticas da educação em engenharia, no contexto do que está sendo mais discutido naquele momento. Este ano nós debatemos bastante a questão das diretrizes curriculares porque elas estão em implantação. A nova edição foi em 2019, com alteração em 2021. Também discutimos bastante a questão da extensão nos currículos das engenharias, a inovação, as temáticas emergentes para a formação do engenheiro, por exemplo, ciência de dados, inteligência artificial, hidrogênio, mobilidade. E várias outras temáticas que estão perpassando o mundo todo. Discutiu-se bastante que perfil de engenheiros se pretende formar para atender ao século XXI. Hoje não se busca somente um engenheiro com formação tecnicista, ou seja, com saber técnico e científico, mas também com saber generalista e humanista. As empresas buscam os que têm inteligência emocional, que sabem trabalhar em equipe, se comunicar. A competência técnica é fundamental, porque ele não pode nem exercer a função como engenheiro se não a tiver, mas outras questões também são importantes e são requeridas no mercado de trabalho.
Em que etapa estamos nessa evolução do engenheiro tecnicista para esse profissional com múltiplas competências?
Com a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) foram extintos os currículos mínimos. Nós passamos, todos os cursos de graduação do Brasil, a formular as novas diretrizes curriculares. Nossa primeira diretriz nesse novo advento foi a de 2002, que já não trazia mais só aquela formação tecnicista, os conteúdos das disciplinas bem fechadas, as caixinhas. Já trouxe uma formação, como eu falei, mais crítica, humanista, generalista. De 2002 até a outra diretriz, que foi de 2019, fomos percebendo algumas questões que o mercado de trabalho foi exigindo. Fizemos nova alteração junto ao Conselho Nacional de Educação, agregando competências à formação. Ou seja, que conteúdos e metodologias de ensino e aprendizagem nós iríamos utilizar para ensinar. Nós listamos oito competências, claro que deve ter outras, mas nós tentamos colocar as principais nas diretrizes curriculares de forma que atendam de fato toda essa mudança do século XXI. Essa era da informação é muito dinâmica, muda bastante. Então nós temos que ter um engenheiro que seja mais amplo, adaptável, flexível, crítico; que consiga trabalhar para solucionar problemas, com as tecnologias. Ele tem que ter uma formação diferenciada, saber fazer, saber aprender. É outro perfil, até mesmo porque essa juventude tem pressa para tudo, para aprender, fazer, entender, se formar, usar as tecnologias. Você não consegue fazer um curso somente conteudista porque não vamos conseguir fazer com que os alunos fiquem na universidade nessa dinâmica das décadas passadas. Quando eu me formei, o meu curso era extremamente tecnicista, do saber, do conhecimento. Hoje nós temos a informação. Esses nativos digitais que chegam às universidades têm outro perfil. Quando eu me formei, não se tinha internet, por exemplo. Hoje, com uma palavra no Google, você já acessa milhões de informações. Ele tem acesso a vídeos que mostram os cálculos todos, que mostram o “engenhar”. Claro que ele precisa saber os fundamentos para se chegar a aquilo, mas a gente tem que alinhar a teoria com essa prática. Em que resulta a engenharia, o que é de fato, o que faz, o que traz para o mercado?
As escolas estão conseguindo colocar em prática o ensino conforme essas novas diretrizes?
Há muito a caminhar, porque não é só a escola colocar no currículo. A mudança tem que acontecer na sala de aula, [o que] envolve docentes que estão há 30, 40 anos, então mudar suas metodologias de ensino e aprendizagem é uma tarefa complexa. É você realmente quebrar paradigmas. É um trabalho que tem que ser feito, e o Cobenge vem para mostrar essas novas metodologias. A gente tem que trabalhar com todas essas temáticas para ajudar as escolas de engenharia, os docentes, os coordenadores de curso a realmente implantar esses novos currículos que nós estamos buscando. Nós temos 5.344 cursos de engenharia, então [seria difícil] falar que todos já estão nessas novas diretrizes. Acho que o percentual ainda é muito baixo dos que estão dentro desse novo contexto que vai ao encontro do mercado de trabalho. Essas questões nos preocupam, [que formação estão oferecendo] as escolas de engenharia, que são muitas no Brasil – nós temos 1.360 instituições de ensino. Estão de fato caminhando junto à globalização, já que o mercado não é só nacional, [mas também] internacional?
Do ponto de vista quantitativo, qual o panorama? O Brasil está formando engenheiros em número suficiente? A evasão ainda é um problema?
Isso continua, nós temos muita evasão, é um funil. A engenharia sempre vai ser um funil, vão chegar a se formar 10% ou 20%, por “n” motivos: não conhece o que é engenharia, quais as exigências. O aluno chega muito despreparado da educação básica, e nós temos que fazer nivelamento para que ele possa dar conta da grandiosidade que é a engenharia. E desconstruir muitas questões, porque se acha que o engenheiro tem que ser o super-herói da matemática e da física. Não, ele tem que entender e gostar, ter afinidade, mas não precisa ser um matemático ou físico. Isso muitas vezes se planta na educação básica, “engenharia é difícil porque matemática é difícil”. Matemática é uma ciência como outra qualquer, não tem nada mais difícil do que as ciências sociais, humanas, biológicas. Depende de como ela é transmitida, ensinada. Hoje no Brasil, conforme o último Censo do Inep, de 2022, [graduam-se] 120 mil engenheiros [por ano], ainda um número pequeno para o tamanho do nosso país, para atender as demandas. E não basta só formar, temos que formar com qualidade. Se você não tiver engenheiro com qualidade, a empresa também não absorve. Ela quer um engenheiro com tudo aquilo que a gente colocou nas diretrizes curriculares, com aquele perfil e competências. [Por outro lado,] tem um número enorme de engenheiros que estão indo para o mercado financeiro; até na área de marketing e design tem engenheiro atendendo. Justamente pela capacidade de raciocínio lógico, as empresas buscam engenheiros para ocupar cargos gerenciais de administração, e aí ele sai da sua área de formação, causando uma lacuna no mercado de trabalho. Isso é uma coisa que a gente tem que pensar também, como fazer com que o engenheiro atue na sua área.
Junto com isso existe a chamada fuga de cérebros, dos profissionais que encontram oportunidades mais interessantes fora do País. Mas ao mesmo tempo há desemprego na categoria.
Eu não consigo assimilar num curso tão robusto como é a engenharia o desemprego. O engenheiro, como eu falei, além de estar na sua função técnica, pode estar em outras. O que eu entendo nessa questão do desemprego é que muitos querem ficar nas grandes capitais, não querem fazer essa mobilidade, e nosso país é muito grande. Então às vezes há vaga no interior do Nordeste, mas ele não quer sair, por exemplo, de São Paulo. Isso é uma utopia, eu quero ver disponibilidade para ir para Mato Grosso, Tocantins, Pará. Tem emprego, só que eles ficam buscando ali naquele centro, Rio, São Paulo, Minas, no máximo no Sul. Eu não acho que não tenha emprego neste Brasil desse tamanho. A questão é que não querem sair da sua zona de conforto; se formam jovens, muitos ainda morando com os pais. Eu falo muito com meus alunos: você não pensa que vai se formar e seu emprego vai estar pronto, do lado da sua casa e naquela companhia com que você sonhou a vida inteira. Abra sua cabeça a um leque de opções que tenho certeza que você não ficará desempregado. E vá atrás, participe dos processos seletivos, se disponibilize. Com uma boa formação você não fica desempregado. O engenheiro é criativo, ele sabe criar espaços, pode também montar uma startup, não precisa ter empregos prontos. Por isso que eu nem gosto de falar de mercado de trabalho, mas do mundo do trabalho, muitas vezes não tem um emprego pronto, mas você pode criar oportunidades.
A senhora é a primeira mulher a presidir a Abenge em 50 anos. De um modo geral, a engenharia ainda é uma profissão masculina, com a presença feminina se limitando a 20%. Com tornar a área mais igualitária em termos de gênero?
Muito me honra poder estar ocupando esse espaço, esse lugar só masculino por 50 anos. [Essa questão] está muito na pauta da Abenge e eu coordeno um grupo de trabalho “Mulheres nas engenharias”. Nós formamos em torno de 28% de mulheres, mas isso se considerar todas as modalidades. Se pegar uma Engenharia Mecânica, vai dar 2%; da Computação, 5%. Na Ambiental, de Produção, chega a 40%, 50%. E isso tudo passa pela educação básica, porque na família, na sociedade, nas mídias se descontrói a mulher estar nesses espaços, se criam estereótipos: isso não é para as mulheres, e sim para os homens, isso não é para menina, é para menino. “Isso é difícil. Por que você não vai para a saúde, para humanas?" É isso que se coloca para as mulheres, não só no ambiente familiar, mas na sociedade também. Se você olhar nas mídias, elas sempre desconstroem mulheres em alguns espaços. Dou um exemplo: na Ciência da Computação, na década de 1970, 70% de quem se formava eram mulheres, hoje não chega a 16%. Porque quando surgiram os jogos eletrônicos começou-se a falar que era para meninos, então as mulheres se afastaram dessa área. Tem que ter muito cuidado com o que a mídia coloca. Eu brinco muito que até o capacete na cabeça de uma menina a afasta de fazer engenharia. Só se usa capacete quando vai numa área de risco, como equipamento de segurança. Se está no escritório você não vai ficar de capacete, mas em tudo quanto é cartaz em que você vê mulheres, estão de capacete. Primeiro, desconstrói na infância, o brinquedo das meninas é a boneca para cuidar, o ursinho de pelúcia. Não busca dar jogos, desenvolver o cognitivo com legos, kit de robótica. Então já começa por aí que a menina fica achando que o mundo dela é muito rosa, nada que suje a mãozinha, que faça esforço, que tenha que pensar mais. Chega também às creches, especialmente as públicas, que não têm os recursos para desenvolver o cognitivo das crianças. E piora quando chega ao ensino fundamental, e aí [há a ideia de que] a matemática é difícil, não é para meninas. Temos que trabalhar lá com a educação básica para mudar isso, porque a mulher pode estar onde ela quiser, fazer o curso que quiser. As escolhas profissionais são dela, tem todo o direito de escolher, até de ser engenheira mecânica, trabalhar no chão de fábrica de uma indústria automobilística. As mulheres são mais de metade da população mundial, como podem estar excluídas de pensar as soluções para os países? Tenho certeza que as soluções são bem melhores quando se unem os diferentes gêneros para pensar: as ideias serão mais criativas, as soluções serão melhores e o atendimento às demandas da sociedade certamente será melhor.
Assista ao vídeo da entrevista