Soraya Misleh*
Emaranhado de fios, ausência de engenharia de manutenção, sobrecarga de transformadores e necessidade de adequação, falta de investimentos no sistema elétrico, afrouxamento de regras relativas a duração e frequência de interrupções. Apresentados pela Federação Nacional dos Engenheiros (FNE), todos esses problemas revelam a queda da qualidade dos serviços após as privatizações, escancarada com o apagão paulista iniciado em 3 de novembro último, após fortes chuvas e vendaval.
Mais de 4 milhões de domicílios no Estado foram afetados e centenas de milhares ainda permaneciam às escuras cinco dias depois. Integram a área de abrangência em São Paulo da multinacional italiana Enel, que atende, em 24 municípios da Região Metropolitana (RMSP), 7,8 milhões de unidades consumidoras.
Diferentemente do que afirmou o presidente da Enel SP, Max Xavier Lins, não se pode colocar a culpa pela demora no temporal e ventos que alcançaram mais de 100km/h. É o que demonstra Carlos Augusto Ramos Kirchner, diretor do SEESP e consultor na área regulatória de energia elétrica: “O serviço público de fornecimento e distribuição de energia elétrica vem, nos últimos tempos, se degradando mesmo em ocorrências em que inexistiu contribuição climática adversa.”
Ele constata: “As cidades cresceram, as normas de segurança a serem seguidas se tornaram mais rígidas, tornando as intervenções na rede elétrica mais demoradas, as mudanças climáticas estão cada vez mais severas, e as equipes de manutenção das distribuidoras estão subdimensionadas.”
instalação da Frente Parlamentar Municipal da Infraestrutura e Engenharia de São Paulo no dia 7 de novembro, na sede do SEESP, na Capital, presidida pelo vereador Eliseu Gabriel (PSB). No ensejo, Murilo Pinheiro, presidente do SEESP e da FNE, observou que enquanto seu lucro dobrou em quatro anos e o número de clientes aumentou, a Enel reduziu em mais de 30% seu quadro de pessoal desde 2019. “É preciso responsabilizá-la. Quando a companhia era estatal, para passar energia, tinha que limpar a rede, fazer poda, manutenção, um trabalho imenso, que não foi feito agora.”
O apagão mereceu atenção durante a
A distribuidora Enel adquiriu a concessão em 2018 – portanto, 20 anos após a privatização da Eletropaulo ocorrida na onda das desestatizações no setor elétrico dos anos 1990. Murilo questionou essa venda direta, em que a AES Eletropaulo acabou por repassar a concessão a outro grupo privado: “Como pode? Se não deu certo, tem que devolver para o Estado.”
FNE cobra providências
Enquanto se aguardam do poder público e órgãos reguladores ações efetivas em prol do interesse público, a FNE entrou com representação junto à Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon-SP). A motivação foi a demora no restabelecimento do fornecimento de energia elétrica a milhares de consumidores, sobretudo no Estado de São Paulo, e os inúmeros prejuízos causados a eles.
Confira aqui a Representação da FNE à Fundação Procon-SP
O documento, encaminhado no dia 21 de novembro à Fundação, traz análise aprofundada em 319 páginas e revela que não vêm sendo cumpridas “pelo menos duas disposições constantes dos contratos de concessão” firmados pela União junto às distribuidoras: a obrigação de “manter e melhorar os indicadores de qualidade e de ressarcir os consumidores dos danos em geral”. Parte da percepção de que “atos administrativos e regulatórios” da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) conflitam com tais disposições.
“No contrato de concessão e na Lei do Código de Defesa do Consumidor todos os danos causados pela distribuidora deveriam ser ressarcidos, por exemplo perda de alimentos que dependem de refrigeração. Mas a Aneel somente admite ressarcimento de danos elétricos, ou seja, aqueles causados por oscilações da energia”, explica Kirchner.
Sem limites para escuridão
Segundo ele, a representação é “uma evolução do que tínhamos apresentado, demonstrando terem aumentado os indicadores de continuidade a partir de 2022”.
Kirchner se refere ao afrouxamento nos denominados DIC e FIC (duração em horas e frequência das interrupções), além de outros indicadores. Através deles, a Aneel faz a aferição da qualidade do serviço público de distribuição de energia elétrica.
Conforme o diretor do SEESP, a concessionária antes era obrigada a restaurar a energia em até 4,59 horas, sob pena de multa. Mas a partir do início de 2022 esse limite passou para sete horas. Para uma única interrupção, esse tempo praticamente dobrou (2,52h para cinco horas). “Significa que em um mês, expurgadas as interrupções com menos de três minutos de duração e as interrupções em ‘dias críticos’ [ocorrências emergenciais como as do dia 3 de novembro], o consumidor pode atingir até sete horas sem energia elétrica.”
Como consta da representação da FNE, teve outro afrouxamento nas regras ainda mais expressivo pela Aneel, por meio de sua Resolução Normativa no.956, de 7 de dezembro de 2021: a extinção dos limites trimestral e anual para interrupções de energia, que antes equivaliam, respectivamente, a duas e quatro vezes o mensal.
“Contrariando o interesse público e sem qualquer divulgação, na prática, com a extinção, os limites anuais para os indicadores de continuidade DIC e FIC triplicaram”, critica Kirchner. E acrescenta: “Desde o início de 2022, a distribuidora pode prestar um serviço de pior qualidade sem ter de pagar compensação financeira aos consumidores, pois a chance de violar os limites de continuidade ficou menor.”
Mais de R$ 12 milhões de multa
Segundo Carlos Coscarelli, assessor-chefe responsável pela Diretoria de Estudos e Pesquisas do Procon-SP, a Fundação está avaliando a demanda da FNE para “encaminhamento mais adequado do tema para que consiga a melhor eficácia, dentro das nossas atribuições legais e institucionais”.
Desde as primeiras horas com falta de energia, no dia 3 de novembro, o Procon-SP, também de acordo com Coscarelli, começou a receber as reclamações dos consumidores em seu site, em sua maioria, “pela falta da prestação do serviço, por falha no serviço de atendimento – muitos clientes sequer conseguiam registrar o problema no site da empresa, e a demora ou falta de informações sobre previsão de retomada do fornecimento”. Além disso, acrescenta, “informações desencontradas sobre ressarcimento também foram objeto de reclamações, vindas de consumidores de 26 cidades de toda a Região Metropolitana, além da Capital. Foram mais de 2 mil registros, que ainda continuam sendo feitos pelos consumidores”.
Coscarelli pontua que o Procon-SP, “já na manhã de segunda-feira, dia 6, notificou a Enel e todas as demais empresas distribuidoras de energia em todo o Estado, para que apresentassem suas justificativas e planos de contingência, considerando já estar claro que as questões climáticas devem interferir cada vez mais no fornecimento de serviços essenciais como energia e telecomunicações. Inclusive, as teles também foram notificadas, uma vez que falhas nesse serviço também foram reclamadas por consumidores”. E enfatiza que a Fundação “segue conversando com as empresas e já lavrou uma primeira multa contra a Enel, superior a R$ 12 milhões, pela descontinuidade na prestação do serviço; além disso, estuda possíveis novas punições por outras infrações ao Código de Defesa do Consumidor”.
Aos consumidores, o assessor-chefe traz a recomendação de que fiquem atentos aos seus direitos, que compreendem: “desconto proporcional, na fatura de serviços, do tempo em que a residência permaneceu sem energia elétrica; tratamento dos pedidos de ressarcimento por alimentos e remédios que tenham estragado por falta de refrigeração e, também, o reparo ou indenização por danos em equipamentos elétricos causados por picos de energia”.
Processo de fiscalização
A Aneel informa que instaurou “processo de fiscalização”, em convênio com a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp), para apurar a responsabilidade da concessionária Enel e eventualmente aplicar “as sanções cabíveis”. A pretensão é que os “primeiros resultados”, como atestou a assessoria de comunicação em 17 de novembro, sejam apresentados em 30 dias – ou seja, em meados de dezembro.
Marcos Roberto Lopomo, diretor de Regulação Técnica e Fiscalização dos Serviços de Energia da Arsesp, explica que a agência paulista “possui 24 empregados públicos voltados exclusivamente para a fiscalização dos serviços de energia elétrica”.
Conforme a assessoria de comunicação da Aneel, a investigação busca a elaboração de relatórios com base em planos de resultados apresentados pelo “agente fiscalizado”, “com escopo e prazos bem definidos, levando em consideração a importância, a gravidade, o risco e a prioridade dos temas analisados”.
Se a Aneel constatar que falhas apontadas “nas etapas de monitoramento e análise não são corrigidas no período de acompanhamento ou quando implicam alto risco à adequada prestação do serviço ou à execução das atividades de fiscalização (ex.: informações incorretas ou prazos inadequados), o processo segue para a fase de notificação e, eventualmente, de aplicação de sanções. As multas podem chegar a até 2% do faturamento da distribuidora”.
Planos de contingência
Em face das mudanças climáticas, Lopomo assevera que “a Arsesp busca complementar as obrigações da concessionária ao promover anualmente o Plano Verão”. Este contempla a apresentação pelas empresas de seus planos de contingência, visando o “pronto restabelecimento do fornecimento de energia em situações emergenciais, comumente observadas por ocasião de intempéries típicas do período”, além dos resultados posteriores, incluindo dificuldades, para subsidiar “novos planos de atuação durante o próximo ciclo”.
Planos de contingência pelas empresas são recomendação do Procon-SP, como frisa Coscarelli, para que considerem “sua atuação a partir do agravamento dos efeitos climáticos, os quais terão impacto direto sobre o setor de energia, cuja infraestrutura está, majoritariamente, exposta a intempéries”.
A Enel, por meio de sua assessoria de comunicação, informa que seu plano emergencial prevê “reforço e mobilização máxima e antecipada do número de técnicos em campo”. Também orienta que “em situações de contingência”, os clientes utilizem os canais digitais para agilidade do atendimento (SMS 27373 pelo celular ou site www.enel.com.br).
Soluções técnicas
Um dos problemas que demandam solução, como propugnam há tempos o SEESP e a FNE, é dar fim ao emaranhado de cabos. O tema é abordado em reportagem no JE 572 sobre necessidade de sistema de aterramento, de modo a solucionar a questão da “ocupação desordenada da infraestrutura compartilhada por diversos serviços, como distribuição de energia, telecomunicações e iluminação pública”.
Leia aqui a reportagem do JE 572: “Cumprir as normas, fazer aterramento e salvar vidas”
Lei 17.501/2020 obriga as concessionárias do serviço público de distribuição de energia a observarem as normas técnicas para “correto uso do espaço público” em relação ao posicionamento e alinhamento de todas as fiações e equipamentos instalados em seus postes.
Na Capital, a
A Prefeitura conta com o Programa SP Sem Fio, para enterramento de fios em 12 regiões da cidade, num total de 65,2km. Realizada em parceria com a Enel, São Paulo Transporte S/A (SPTrans), Coordenadoria de Gestão da Rede Municipal de Iluminação Pública (Ilume) e Associação Brasileira das Prestadoras de Serviços de Telecomunicações Competitivas (Telcomp), a ação lançada em 2017, todavia, não avança no ritmo que a Capital precisa. No total a cidade convive com cerca de 20 mil quilômetros de cabos e fios aéreos.
Transformar a rede aérea em rede subterrânea é necessário, contudo tem se mostrado de difícil viabilização, como observa Kirchner, dado seu alto custo. “Uma solução técnica de menor custo e que produz ótimos resultados onde existe convivência com árvores é a alteração da rede primária (média tensão) para compacta e a transformação da rede secundária (baixa tensão) de convencional com quatro cabos (três fases e neutro) para cabos multiplexados (isolados e reunidos)”, sugere.
Outro problema, ainda como descreve Kirchner, é a sobrecarga em transformadores, notadamente em período noturno. “A injeção da geração distribuída de usinas fotovoltaicas instaladas nas residências se dá em período diurno, sendo que o consumidor recebe a devolução da energia elétrica em período noturno. Como o consumidor não paga pela energia por ter geração própria, não é incentivado a economizar, o que pode resultar em consumo elevado e sobrecarga no transformador. A solução para a distribuidora é trocar o transformador por um de maior capacidade de carga”, ensina.
Conforme ele, trata-se de questão de âmbito local, mas também nacional, de forma que as concessionárias de um serviço público essencial cumpram com sua obrigação. “Tem de haver ações junto à Aneel e à Arsesp para que a fiscalização se torne mais efetiva e o regramento, adequado.”
Poda de árvores
A interrupção de energia também se dá devido à queda de árvores. No dia 3 de novembro, conforme noticiado pela Folha de S. Paulo, o Corpo de Bombeiros atendeu 1.281 destas ocorrências. Kirchner lembra que embora a poda seja responsabilidade da Prefeitura, a atribuição é da distribuidora no caso daquelas árvores cujos galhos, com a ação dos ventos, “possam encostar na fiação elétrica, provocar faiscamentos e até romper cabos”.
“É preciso uma maior interação dessas empresas com o poder público – estadual e municipais –, para a gestão dos postes, rede aérea e poda de árvores, dentre outros aspectos que visem preservar a integridade de toda a infraestrutura, evitando que o consumidor sofra com a interrupção no fornecimento de energia elétrica”, salienta o diretor do SEESP.
A Prefeitura de São Paulo (PMSP), por meio de sua Secretaria Municipal das Subprefeituras (SMSUB), informa que em maio de 2020 promoveu uma parceria com a concessionária. O Termo de Convênio, como detalha, foi renovado em junho de 2022 e prevê que a Enel deve realizar as podas de adequação (quando os galhos crescem em direção aos fios), de correção (corte de galhos que cresceram em desarmonia), de limpeza (eliminação dos ramos secos e/ou apodrecidos das árvores), de emergência (remoção de ramos que se quebram durante tempestades). Além disso, é atribuição da concessionária o rebaixamento, ou seja, redução drástica da copa da árvore, de modo que o restante de sua estrutura não esteja mais em contato com rede elétrica. “As equipes da PMSP darão continuidade aos trabalhos de remoção da árvore do local, sem risco”, conclui a SMSUB, destacando que “todo serviço realizado pela Enel deve ter o acompanhamento de um engenheiro agrônomo, florestal ou biólogo”.
Conforme o Termo de Convênio, informa ainda a SMSUB, “a concessionária tem um prazo de até 90 dias para atendimento das notas de manejo arbóreo solicitadas pelas subprefeituras”. Também segundo a Pasta, para serviços de manejo emergencial, situações em que seja constatada a existência de risco à segurança pública, a concessionária deverá realizar o atendimento de forma prioritária, não ultrapassando 24 horas. “Qualquer resposta ou serviço fora desses prazos configura atraso por parte da empresa”, ressalta.
A SMSUB comunica que o grupo de trabalho formado pelos representantes dessa Secretaria e da concessionária “tem recebido alguns relatos quanto a podas incompletas em indivíduos arbóreos manejados pela Enel. Nos casos relatados, foram removidos apenas os galhos em atrito com a rede elétrica, não sendo realizado, portanto, o manejo completo. Entretanto, está previsto no Termo de Convênio, e em qualquer caso, que a concessionária deverá observar as melhores práticas de manejo com o objetivo de preservar a saúde, o equilíbrio e a estabilidade dos indivíduos arbóreos. Nesse intuito, a Prefeitura vem solicitando esclarecimentos à concessionária”.
A Secretaria prossegue: “Sobre as árvores envolvidas na fiação, é importante destacar que a Enel conhecia todas as condições da cidade quando assumiu a concessão. Entre as condições, está o plantio de exemplares incompatíveis com as vias públicas realizados pela população.” A SMSUB informa que há hoje na cidade de São Paulo 3.632 exemplares (árvores com podas pendentes) aguardando atendimento por parte da concessionária, parte deles desde 2020.
Concessão questionada
Diretor adjunto da Delegacia Sindical do SEESP no Grande ABC, Gerson Prado Galhano atuou como engenheiro da Eletropaulo entre 1985 e 1998, ano da privatização da empresa. Ele lembra que manutenção preventiva e corretiva, assim como garantir estrutura para atendimento em períodos de chuva sempre foram parte do trabalho. “Não sabemos se é dada a devida relevância a isso, e aí a probabilidade de dar problema é muito maior. É preciso ter equipe, estrutura, planejamento. Uma fiscalização e um acompanhamento mais adequados”, avalia.
Galhano conclui: “Energia elétrica, telecomunicações, água e saneamento, combustíveis são áreas muito estratégicas para serem colocadas como commodities. Isso teria que estar na mão do Estado, porque envolve o comprometimento com a coletividade e o tratamento desses eventuais problemas. Ter equipes e não terceirizar, salvo exceções que funcionam.”
O apagão paulista colocou em xeque as privatizações em setores essenciais. O prefeito da Capital, Ricardo Nunes, chegou a enviar à Aneel pedido de suspensão do contrato de concessão com a Enel. Kirchner explica que “a perda da concessão por caducidade poderia ocorrer (é prevista no contrato para casos extremos), mas o processo precisaria ser bem instruído com fatos demonstrando que o serviço prestado não é adequado”.
Possíveis irregularidades e práticas abusivas são objeto de apuração na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Enel, cuja sessão em 14 de novembro para ouvir o presidente da companhia chegou a ter quedas de luz.
Instalada na Assembleia Legislativa de São Paulo ao final de maio deste ano, a CPI investiga, em especial, no período de 2018 até 2023, “as quedas de energia, a cobrança de valores, a atuação operacional, o suporte aos consumidores e prefeituras, a execução da tarifa social, os contratos assinados, a execução dos investimentos e das obras previstas, bem como o estado de conservação da rede de infraestrutura e de distribuição energética”.
*Colaborou Jéssica Silva