Os dias 25 de março e 22 de abril de 2014 entraram para a história da democratização da comunicação com a aprovação do Marco Civil da Internet no Congresso Nacional. Em 23 de abril, a presidente Dilma Rousseff sancionou o texto, a Lei nº 12.965/14, na abertura do “NET Mundial – Encontro multissetorial global sobre o futuro da governança da internet”, em São Paulo. A nova norma entra em vigor no dia 23 de junho, mas já existem discussões sobre a necessidade de sua regulamentação. Ainda não há concordância sobre quais os pontos, mas a privacidade deve ser discutida em uma lei de proteção de dados e a liberdade de expressão, na nova lei de direitos autorais.
O Marco Civil é uma carta de princípios inspirada na Constituição Federal de 1988, que aponta direitos aos usuários, deveres de quem provê o acesso e confere atribuições ao poder público. Entre eles, assegurar mecanismos de governança transparentes, colaborativos e democráticos, com a participação dos vários setores da sociedade, garantindo acessibilidade, capacitação, integrada a outras práticas educacionais, promoção da cidadania, da cultura e do desenvolvimento tecnológico.
A internet promove a comunicação livre e aberta. E assim deverá permanecer após a aprovação do Marco Civil. Constante em seu artigo 9º, a chamada neutralidade de rede é um dos princípios centrais, que garante tratamento igual a todos os pacotes de dados que trafegam no ambiente virtual, sem discriminação. Outros dois pilares contidos na legislação, em diversos artigos, são privacidade e liberdade de expressão.
O objetivo é que a internet continue a impulsionar o processo de democratização da comunicação com novas fontes de informação, como blogs e redes sociais. Esse movimento encontra como adversários grupos políticos, corporações, principalmente as operadoras de telefonia – que são provedoras de acesso da rede –, e a indústria do copyright, que vem tentando cercear a liberdade de expressão na web. Diversos vídeos com trechos de programas da Rede Globo, por exemplo, têm sido retirados do ar a pedido da emissora, mesmo que a lei vigente permita a reprodução de trechos.
Concessão à vigilância
Embora considerado uma vitória, em pelo menos um aspecto o Marco Civil aprovado deixou a desejar para os que militam pela liberdade na internet. Já durante o Net Mundial, que reuniu especialistas no assunto, vindos de mais de 90 países, teve início a pressão pelo veto presidencial ao artigo 15, que trata da privacidade, incluído posteriormente, sem a concordância da sociedade civil. Segundo analistas de tecnologia, ele institui um dispositivo que torna obrigatório a todos os sites de aplicativos, constituídos na forma de pessoa jurídica, a retenção dos dados de acesso (em blogs e redes sociais, por exemplo). “Para aprovar essa lei, tivemos que fazer concessões aos grupos vigilantistas conservadores e retrógrados que dominam o Congresso Nacional. E uma delas é o artigo 15. Estamos obrigando os que antes não faziam isso, aumentando o mercado de Big Data (comercialização de dados de usuários na rede)”, explicou o professor da Universidade Federal do ABC Sergio Amadeu, durante sua participação no Arena NET Mundial, evento organizado pelo governo brasileiro paralelamente ao NET Mundial, também na Capital paulista.
Amadeu alerta que o perigo vai muito além. De acordo com ele, cidadãos estão se tornando alvo de militares na rede, uma vez que agências que atuam nesse segmento, como as estadunidenses CIA (governamental) e NSA (privada), vêm investindo pesado na espionagem de pessoas comuns. “Os dados que passamos a essas corporações (como Microsoft) não ficam só com elas, que os entregam para finalidades econômicas, geoestratégicas e para manter um poder global. As corporações só devem guardar nossos dados com a nossa concordância.” Amadeu continua: “Elas invadem as máquinas das pessoas. Descobrimos graças a Edward Snowden (ex-técnico da NSA)”, completa.
Contudo, tanto a defesa da rede contra a chamada militarização quanto a neutralidade ficaram fora do documento final emitido pelos participantes do NET Mundial. Não houve acordo com países como Estados Unidos e a comunidade da União Europeia. Durante o evento, brasileiros e estrangeiros concordaram que o Marco Civil foi um passo importante, mas que se trata do início de algo muito maior. Amadeu convocou a todos à construção colaborativa de um projeto de lei de proteção de dados para regulamentar a privacidade e a participarem dos debates sobre mudanças da atual lei de direitos autorais, proposta que deverá ser enviada ao Congresso após as eleições.
“Quando uma legislação é aprovada, imediatamente existe a possibilidade de ela ser corrompida. No caso do Brasil, a mídia de massa, as grandes corporações e pressões do governo podem fazê-lo com o Marco Civil. A única forma de combater isso é por meio de nosso trabalho corajoso e solidário”, declarou Julian Assange, criador do Wikileaks, responsável por muitas revelações sobre atos ilícitos de governos e programas de espionagem dos Estados Unidos, que participou via internet do Arena NET Mundial. Atualmente, Assange encontra-se detido na embaixada equatoriana, em Londres, sob acusação de abuso sexual em seu país, a Austrália. O ativista nega as acusações e aguarda autorização inglesa para seguir ao Equador, que lhe ofereceu asilo político. “Apesar das concessões, é uma lei importante, sobretudo para um país do tamanho do Brasil”, avaliou.
Por Deborah Moreira