Rita Casaro
Antonio Carlos Costa: “A análise vai ficando cada vez mais complexa porque a gente não sabe o que vai acontecer no dia de hoje, de amanhã.” Foto: Divulgação FiespComplexa e de impacto ainda imensurável. Assim o engenheiro agrônomo Antonio Carlos Costa, superintendente de Agronegócio, Desenvolvimento Sustentável e Comércio Exterior da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), resume a situação criada pelos Estados Unidos ao anunciar sobretaxas à importação de vários produtos com as mais variadas origens, inclusive de seus parceiros comerciais tradicionais.
Com idas e vindas em relação à definição de alíquotas, incluindo uma queda de braços com a China e questionamentos junto à Justiça, as incertezas permanecem após três meses do “Dia da Libertação”, conforme batizado pelo presidente Donald Trump o 2 de abril em que fez o anúncio da taxação. “A análise vai ficando cada vez mais complexa porque a gente não sabe o que vai acontecer no dia de hoje, de amanhã, porque os Estados Unidos estão à mesa de negociação com vários países ao mesmo tempo, inclusive a China. A gente não sabe como tudo isso vai se acomodar”, ilustra Costa.
O estabelecido para o Brasil até o momento é a alíquota geral de 10% e a de 50% para aço e alumínio, tornando o setor siderúrgico nacional o mais imediatamente afetado. “A gente está falando de 77% das nossas exportações de semiacabados de ferro e aço. A gente manda para lá 4,5 milhões de toneladas. É muito significativo”, informa ele.
Contudo, a economia, a indústria e a engenharia nacionais podem vir a sofrer danos colaterais das alíquotas que forem efetivamente aplicadas aos países asiáticos cujo parque industrial faz frente ao estadunidense e são o alvo preferencial da taxação. “Se for imposta uma tarifa impeditiva para a China, existe uma tendência de desvio de comércio. Ou seja, esses produtos, ao não conseguirem entrar nos Estados Unidos, vão buscar locação em outros países do mundo. E o Brasil é um mercado grande, que pode vir a ser alvo. Isso pode gerar, eventualmente, um surto de importação”, alerta.
Coordenando na Fiesp as estratégias de atuação em áreas como defesa comercial e administração tarifária, Costa enfatiza a necessidade de o Brasil estar pronto para agir dentro das regras de comércio internacional para proteger seus interesses. “Precisa fortalecer a área dentro do MDIC [Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços]. É uma equipe altamente qualificada, muito especializada, mas precisa de mais gente”, avalia.
Nesta entrevista ao Jornal do Engenheiro, ele destaca ainda a dimensão das medidas de Trump, que subvertem as normas pactuadas desde o pós-guerra. “O que a gente está vendo agora é algo inédito, um país com peso no comércio internacional gigantesco, estabelecendo as suas próprias regras de comércio e tratando países de maneira diferenciada.” Confira a seguir e no vídeo ao final.
De modo geral, o que essas medidas significam para o comércio global?
Isso significa uma mudança bastante relevante de uma concertação internacional que a gente teve no pós-guerra em busca de um regramento que veio a partir do Acordo Geral sobre Tarifas de Comércio, o GATT, que precedeu a Organização Mundial do Comércio (OMC). Um dos pilares desse acordo é que qualquer benefício que um país atribuísse a outro deveria ser automaticamente estendido a todos. Isso evitou durante muito tempo discrepâncias muito grandes de comércio e, a partir daí, surgiram várias iniciativas de acordos comerciais, mas que cumprissem pelo menos os requisitos mínimos estabelecidos pelas regras multilaterais. O que a gente está vendo agora é algo inédito, um país com peso no comércio internacional gigantesco, estabelecendo as suas próprias regras e tratando países de maneira diferenciada. Estados Unidos e China representam praticamente um quarto do comércio internacional de bens. Então a gente está falando de um país que tem um impacto sobre as transações internacionais absolutamente fundamental.
Qual o impacto esperado para a economia brasileira, especialmente para o setor industrial?
Essa situação toda ainda é muito móvel. Acho que a gente precisa ter essa compreensão. O que a gente tem hoje de mais sólido, vamos dizer assim, é uma tarifa recíproca aplicada ao mundo todo de 10%, e o Brasil entra nessa mesma regra. Foi aquele anúncio que o Trump fez no dia 2 de abril para os produtos sem conteúdo americano. Então, se a gente exporta um produto para os Estados Unidos que tem mais de 40% de conteúdo americano – ou seja, se a gente importa dos Estados Unidos a matéria-prima para a manufatura e reexporta para os Estados Unidos –, o percentual de produto sem insumo norte-americano vai ser taxado. Vamos pegar aí um exemplo de aeronave. Se a gente importa 50% de conteúdo americano, a gente vai pagar a tarifa sobre os outros 50%. A tarifa, que seria de 10%, passou a ser de 5%. Essa é a lógica da regra geral, mas existe uma série de excepcionalidades. Por exemplo, o tratamento dado à China, ao México e ao Canadá é específico. No caso do México e do Canadá, é benéfico para esses países em comparação aos demais, até pelo Acordo de Livre Comércio, a proximidade e a interdependência nas cadeias produtivas. No caso da China é o contrário, tem uma penalidade maior. Além dos 10%, tem ainda a sobretaxa da China relativa aos opioides, aquela conversa sobre o fentanil, que é uma alíquota adicional de 20%. E tem produtos que tomam tarifas que vão se sobrepondo. A análise disso já é complexa no cenário atual e se torna ainda mais porque a gente não sabe o que vai acontecer no dia de hoje, de amanhã etc., porque os Estados Unidos estão à mesa com vários países ao mesmo tempo, inclusive a China. Então está muito difícil mensurar impacto, porque a gente não sabe como tudo isso vai se acomodar. Uma negociação dos Estados Unidos com a China afeta o Brasil porque se for imposta uma tarifa impeditiva para acessar o mercado norte-americano, existe uma tendência de desvio de comércio. Ou seja, esses produtos, ao não conseguirem entrar nos Estados Unidos, vão buscar locação em outros países do mundo. E o Brasil é um mercado grande, que pode vir a ser alvo. Isso pode gerar, eventualmente, um surto de importação em determinados setores. E é bom lembrar que, naquele 2 de abril, vários países levaram uma tarifa superior aos 10%, principalmente os asiáticos, que são muito importantes do ponto de vista industrial. No início de julho vence o prazo que os Estados Unidos deram para esses países sentarem-se à mesa de negociação; não se sabe como vai ficar essa situação a partir de meados de julho. Vários países asiáticos tinham tarifa de quase 40% e são grandes produtores do ponto de vista da indústria de transformação, grandes players internacionais. Se essa tarifa ficar muito alta, isso pode também vir para o Brasil. É bom lembrar que os Estados Unidos carregam um déficit comercial com o mundo de US$ 1 trilhão. Que percentual dessa fatia vai seguir entrando nos Estados Unidos e que percentual vai buscar alocação em outros mercados? Essa é a dúvida que paira no ar.
O cenário é basicamente de incertezas, portanto?
E é por isso que sempre que a gente vai fazer uma apresentação aqui na Fiesp, eu falo: “olha, hoje é dia 11 de junho de 2025, 11 horas", porque isso pode mudar à tarde. Ontem [10 de junho] teve uma reunião importante entre Estados Unidos e China em Londres, mas a gente não sabe o que vai acontecer, precisa vir uma ordem executiva do governo americano para a gente poder pisar em terra firme (em 27 de junho, Washington e Pequim anunciaram o desdobramento do diálogo, com a chegada a um acordo envolvendo a facilitação da exportação de terras raras pela China mediante suspensão de restrições a seus produtos; detalhes sobre os acertos ainda seriam divulgados, contudo). O cenário de hoje dificulta muito ter uma avaliação de impacto, não seria muito responsável da nossa parte soltar um número. A gente prefere, ao invés disso, fazer um acompanhamento todos os dias, em relação ao que os Estados Unidos estão publicando, as ordens executivas. A gente criou um sistema para isso, e oferecer esse tipo de informação, enfim, de qualidade, gratuita, para todos os segmentos que podem ser impactados pelo que está acontecendo hoje nesse cenário internacional.
Embora ainda seja impossível dimensionar esses efeitos, o que se espera é necessariamente negativo ou pode haver oportunidades para a indústria nacional, como apontaram alguns analistas, tendo em vista a disputa EUA x China?
A gente vai precisar, em algum momento, setorizar essa análise porque está se falando de uma série de variáveis aqui: as tarifas recíprocas diretamente aplicadas ao Brasil, as aplicadas contra o resto do mundo, mas tem, por exemplo, algumas medidas como aquela que no Trump I já elevou as alíquotas do aço e hoje está levando as importações a pagarem 50%. Então, sem dúvida, esse é um setor fortemente impactado. Os Estados Unidos são hoje o destino mais relevante para as exportações da indústria siderúrgica brasileira. A gente está falando aí de 77% das nossas exportações de semiacabados de ferro e aço. A gente manda para lá 4,5 milhões de toneladas. É muito significativo. Então é lógico que, para o setor siderúrgico, é uma situação muito complexa. E ainda vem o tema do desvio de comércio que pode acontecer. Não que a China estivesse exportando muito aço para os Estados Unidos, mas vai ter uma reacomodação, um rearranjo do comércio global, e que, de novo, o tempo vai mostrar o que vai acontecer. Mas como o aço e o alumínio estão com 50%, a gente tem autopeças, automóveis e uma série de produtos que estão sendo investigados nesse âmbito também. E aí vêm fármacos, vêm semicondutores, madeira, cobre, aeronaves... Tudo isso está em investigação. Qual tarifa será aplicada sobre eles? É possível que dentro de alguns meses a gente já tenha uma acomodação dessa situação toda e um pouco mais de condição de fazer análises setoriais e, a partir delas, expandir para uma análise mais global, da economia brasileira como um todo. Agora, sem dúvida, a partir do momento em que esses produtos específicos vão sendo investigados pelo governo americano e passam a ter uma sobretaxa diferente daquela alíquota, enfim, que está sendo aplicada de forma horizontal a todo mundo, esses setores sentem mais. Porque se você tem uma alíquota de 10% para o mundo inteiro, e o Brasil está dentro disso, você tem uma reacomodação do preço no mercado americano, e é possível que o impacto para o Brasil, para as exportações desses produtos que estão com 10%, seja minorado. Não que isso seja bom, é péssimo, horrível, mas o mundo inteiro estará concorrendo sob as mesmas condições. Agora, tem vários produtos que estão sendo investigados e que podem ter as suas tarifas aumentadas. No dia 1º de abril, na véspera do anúncio do tarifaço do governo norte-americano, teve a divulgação de um relatório sobre produtos que estão sendo também investigados, programas de incentivos à indústria brasileira que estão sendo olhados com lupa pelo governo americano. E aí isso entra no Relatório de Barreiras Técnicas. Enfim, isso vai ter alguma consequência? De novo, o cenário hoje é muito incerto. A gente tem procurado aqui interagir com o governo nesse sentido, trocar informação. Os que os Estados Unidos apontam como investigados pelo USTR [o Escritório do Representante de Comércio dos EUA] são programas que a gente defende, não são programas distorcidos ao comércio internacional. A gente hoje vem trabalhando em parceria com o governo brasileiro para prestar esse tipo de informação ao órgão americano e evitar qualquer tipo de medida também contra o Brasil nesse sentido.
Isso tem relação com um esforço sobre o qual se fala já há muito tempo, que é a recuperação da indústria brasileira. E hoje está em curso o programa Nova Indústria Brasil, pensando, entre outras, nas questões da transição ecológica e da transformação digital. Essa situação pode afetar, inclusive, essas iniciativas?
Eu acho que a gente ainda está um pouco distante de uma avaliação precisa em relação a isso. O Brasil hoje não está na mira direta dos Estados Unidos de uma forma macro. Não vejo hoje as medidas dos Estados Unidos mirando o Brasil em particular. Estão mirando o mundo e, principalmente, os países da Ásia. A questão é qual vai ser a penalidade que vão imputar a esses países da Ásia e aí sim pode ter um efeito para o Brasil indireto, de desvio de comércio ou eventual surto de importação. Eu acho que todos os esforços do Nova Indústria Brasil continuam válidos. A indústria brasileira, do ponto de vista da sustentabilidade, tem ativos importantes, se baseia numa matriz energética limpa, numa biodiversidade espetacular. A gente está desenvolvendo mercado de carbono, que pode abrir, inclusive, caminho para inovação, novas soluções de descarbonização no Brasil. A gente tem biocombustíveis, uma agricultura de clima tropical; o Brasil é o país que mais cresce no uso de bioinsumos, por exemplo, no mundo. Eu, sinceramente, não vejo essas premissas se arrefecerem.
Como o governo brasileiro tem atuado para administrar essa situação?
O Brasil tem colaborado, tem se disposto a negociar. Foi um dos primeiros países, inclusive, a conversar com o Secretário de Comércio dos Estados Unidos e prestar os esclarecimentos necessários. De novo, o Brasil não é alvo. Se a gente for pegar a balança comercial nos últimos dez anos, vai ver que é amplamente favorável aos Estados Unidos. No último ano, a gente teve US$ 300 milhões só, mas chegou, dois anos atrás, a quase US$ 14 bilhões de déficit com os Estados Unidos. O que o Trump quer resolver é o déficit de US$ 1 trilhão que eles têm com o mundo, principalmente com os países asiáticos, alguns europeus, com México e Canadá. Agora, isso não significa acomodação de forma alguma, porque se vier uma medida mais forte contra a China, contra esses países que têm um pacto industrial muito consolidado, o Brasil precisa estar pronto para atuar de maneira célere dentro das regras do comércio internacional, porque o mundo não as abandonou. Então o Brasil precisa fortalecer a sua área de defesa comercial dentro do MDIC. É uma equipe altamente qualificada, muito especializada, mas precisa de mais gente frente ao volume, ao crescimento que a gente tem hoje de pedidos de medida antidumping, por exemplo. A gente precisa ter dados de comércio internacional mais granulares, a Receita Federal publicava esses dados até 2021. Desde então, ela não publica mais com receio de reidentificação dos números [o que fere o princípio do sigilo nas operações internacionais das empresas]. A gente criou aqui na Fiesp uma solução de inteligência artificial para blindar esses números. Fizemos um acordo de cooperação, está andando mais lento do que a gente gostaria porque conhecer esses números é algo urgente para evitar que entrem no Brasil produtos com falsa classificação fiscal, com subfaturamento. Um comércio ilegal, um comércio desleal não pode acontecer no Brasil neste momento. O licenciamento não automático foi reformulado pela Secretaria de Comércio Exterior. Então, hoje, não significa um tiro de canhão, ele é muito preciso. O licenciamento não automático vai em cima daqueles produtos que entram e que têm suspeita de subfaturamento, de algum desvio.
Como é a ferramenta desenvolvida pela Fiesp para acompanhamento das sobretaxas?
A gente criou uma área chamada Fiesp Inteligência de Dados, com vários painéis específicos para que os setores possam se localizar, não só em relação ao tema internacional, mas também em economia, infraestrutura etc.. Nesse painel, tem a Sobretaxa Estados Unidos, criado especificamente para acompanhamento dessas medidas tarifárias da nova administração Trump. Está muito intuitivo e é aberto, gratuito, todo mundo pode ter acesso. Nessa ferramenta, um Power BI, tem dois botões. Um analisa as medidas, que estão ficando cada vez mais complexas e difíceis de acompanhar. O próprio presidente Trump anuncia muita coisa pelas mídias sociais, então gera uma certa dúvida se aquilo já está em vigor. A gente coloca os dados a partir das ordens executivas do governo americano, de fato aquilo que foi implementado, é oficial. E aí a gente faz um trabalho de curadoria, vamos dizer assim, dos dados, porque eles são complexos. Você tem hoje uma série de condicionantes que vão levar a uma tarifa lá no final dessa história, e a gente já traduz isso para o público. Você entra com o código ou o nome do seu produto e vê hoje como é que o Brasil está sendo afetado. Consegue ver também como é que os nossos concorrentes estão sendo afetados. E, do outro lado, a gente tem um acompanhamento para tentar inferir se existe algum surto de importação. Isso é importantíssimo para que a gente ganhe velocidade no remédio, vamos dizer assim, que a gente vai aplicar. Tem um mapinha de calor em que se vê de onde estão vindo as importações do mundo [de um determinado produto]. Quanto mais escuro o mapa, significa que aquele país é mais importante como origem das nossas importações. E aí, então, a gente faz uma análise dos principais países que exportam para o Brasil e como tem sido o desempenho. A gente tem, inclusive, um acompanhamento mensal de importação, se teve um surto, [avalia-se se] é estrutural, conjuntural, se mudou algum indicador econômico, se houve defasagem de produção aqui no Brasil. Tem todo um conjunto de ferramentas que ajuda o setor a fazer o acompanhamento do seu próprio produto e, evidentemente, tem muito mais condição de criticar esses dados. Aí a gente vai conversar e ver que tipo de ação conjunta é possível tomar.
Assista ao vídeo da entrevista