Soraya Misleh / Comunicação SEESP
Nesta quarta-feira (7/10) o SEESP, por intermédio de seu Núcleo Jovem Engenheiro, trouxe discussão fundamental sobre a situação do saneamento básico no Brasil, cujas deficiências se explicitaram em meio à pandemia.
O tema foi objeto do webinar “A engenharia, o saneamento básico e os desafios urgentes do Brasil”, com a participação de Fátima Aparecida Blockwitz, diretora da Delegacia Sindical do SEESP em Sorocaba, e de João Sergio Cordeiro, professor universitário aposentado e diretor da Allevant - Educação. Apresentada pela coordenadora do Núcleo Jovem, Marcellie Dessimoni, a atividade teve ainda a participação de Murilo Pinheiro, presidente do SEESP, à abertura.
Ao saudar os participantes e público, ele destacou a importância da iniciativa para transmitir informações sobre o saneamento e seus desafios, o que diz respeito à “qualidade de vida, a oportunidades e basicamente à saúde”.
Da esq. para a dir., Murilo Pinheiro e João Sergio Cordeiro (acima),
Fatima Blockwitz e Marcellie Dessimoni (abaixo). (Reprodução Youtube)
O tema tem sido abordado nas diversas edições do projeto “Cresce Brasil + Engenharia + Desenvolvimento”, iniciativa da Federação Nacional dos Engenheiros (FNE) com adesão do SEESP – inclusive com consultoria técnica de Cordeiro.
Na versão que será lançada ainda este mês, sobre a recuperação pós-pandemia e retomada de obras paradas no País, não só não será diferente, como ganha dimensão ainda maior, ante a crise sanitária em função da Covid-19. As propostas ali contidas serão apresentadas aos candidatos nas próximas eleições municipais em novembro.
Cordeiro inaugurou sua preleção lembrando que o tema é essencial ao desenvolvimento do País. Não obstante, afirmou, “infelizmente vamos ter que caminhar muito para ter o saneamento em sua plenitude”.
Lembrando que a engenharia é “a arte de transformação do ambiente”, o que se revela a partir do projeto, ele apontou que a questão em pauta está ligada sobretudo à evolução da população e inversão total da ocupação do território a partir dos anos 1970, quando 55% dos 90 milhões de brasileiros viviam nas áreas urbanas – hoje são 85% dos 210 milhões.
Cordeiro frisou a disparidade entre as regiões do País. “Praticamente 88% dos municípios têm menos de 50 mil habitantes, em que se encontra 32% dessa população. Em cidades acima de 100 mil temos um número menor de pessoas e problemas totalmente diferentes”, salientou.
“Isso obviamente traz consequências em todos os sistemas [de saneamento].” Estes são definidos, como explanou, na Lei 11.445/2007, que estabelece as diretrizes e política nacionais para o setor. São: abastecimento de água, esgoto sanitário, manejo de resíduos sólidos e de águas pluviais.
Quanto ao primeiro, Blockwitz apontou que 16% da população brasileira – 35 milhões de pessoas – não têm água tratada.
E um dos graves problemas apresentados por Cordeiro no abastecimento, conforme diagnóstico do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) de 2018, são as perdas da ordem “de quase 40%, com enormes discrepâncias entre os melhores e piores no País, podendo chegar até a 70%”. Um dos exemplos negativos nesse sentido é a região Norte. “Isso não é novo, temos que colocar em prática soluções dentro da engenharia.”
Outro desafio também apontado pelo SNIS – que o especialista revelou – é quanto ao crescimento dos gastos com energia, estando o sistema de abastecimento de água entre os maiores consumidores. Ademais, este gera resíduos sólidos, uma vez que, como ensinou Cordeiro, quase 90% dos provenientes das Estações de Tratamento de Água (ETAs) no Brasil são jogados em rios e terrenos.
“No Estado de São Paulo, são despejados em corpos d´agua 77%, de forma totalmente irresponsável”, indicou. De acordo com ele, isso viola diversas leis relativas à preservação do meio ambiente, inclusive a que define a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010). “É questão que devemos nos preocupar”, alertou.
Conforme Blockwitz, que é engenheira civil e trabalha na Sabesp há 26 anos, a empresa referência no saneamento no Brasil “nunca jogou o lodo da ETA diretamente no lençol freático, procurar coletar e dispor ou nos lixões que vão deixar de existir ou nas Estações de Tratamento de Esgoto. E agora está levando algumas obras para muitas das suas cidades também nesse processo”.
Além dos desafios em abastecimento de água, outro de grande monta apresentado pelo diretor da Allevant - Educação é que metade dos brasileiros não tem rede de esgotamento sanitário, com “consequências ambientais seríssimas e na saúde pública – sugerindo que se devem buscar soluções sobretudo para os pequenos municípios. Isso faz com existam números extremamente complexos, com perdas de dias de trabalho por doenças principalmente intestinais. Há regiões com menos de 10% de coleta de esgoto”.
Em resíduos sólidos, Cordeiro apontou dados que mostram a produção de cerca de 200 toneladas/dia. “Vamos ter que pensar o que fazer com isso. E quando observamos os números, vemos que a coleta seletiva mal recupera ou absorve 10%.”
Também trouxe o alarmante dado de que ainda há porcentagem significativa de lixões no Brasil (17,8%) e, muitas vezes, quando são transformados em aterros sanitários, isso é feito de forma completamente inadequada. “Muitas vezes é somente realizada uma cobertura de resíduos e nada mais. Inclusive em Brasília até pouco tempo tínhamos essa situação.”
Quanto ao manejo de águas pluviais, sequer há normas e capacitação. “Praticamente não existem disciplinas de graduação, muito menos pós-graduação. Temos que conhecer com profundidade o ciclo hidrológico e começar tudo por esse elemento e pela bacia hidrográfica.”
Em relação ainda a essa questão, Blockwitz observou que “é muito comum ter ligação de água pluvial das residências diretamente na rede de esgoto, o que cria problemas seríssimos muito mais para a população, mas também para a Sabesp, porque quando chove o volume aumenta, ocorrem os vazamentos e até os retornos de esgotos dentro das próprias residências. A Sabesp já está cuidando disso, mas não tem poder de polícia, é uma parceria com a Prefeitura”.
A questão da formação na engenharia é chave para o enfrentamento dos desafios. Porém, Cordeiro destacou que embora neste milênio tenha havido crescimento exponencial de cursos de graduação – em 2018 havia 6.100 – e de formandos, ainda há lacunas nos conhecimentos por exemplo de hidráulica. E o profissional, atualmente, deve seguir aprendendo, dada a velocidade da evolução tecnológica. Blockwitz ratificou: “Tem que estudar, estudar e estudar.”
“Para vencer os desafios são necessários recursos humanos, financeiros, conhecimento de gestão e capacitação”, resumiu o diretor da Allevant - Educação.
Na contramão do mundo
Blockwitz lembrou que, em meio a esses grandes problemas, foi aprovado e sancionado em julho deste ano o novo marco regulatório do saneamento (Lei 14.026/2020).
Ela reforçou o cenário a ser enfrentado: “São vários anos de estagnação ou inconstâncias. Noventa e quatro por cento dos serviços são prestados por empresas estatais e apenas 6% pela iniciativa privada, em todas as cidades brasileiras com sistema de tratamento. As estatais enfrentam baixos limites de crédito e investimentos, muito endividamento, burocracia excessiva, alto passivo ambiental. Infelizmente enterrar tubo não dá voto.”
Segundo a diretora do SEESP, o “discurso dos favoráveis ao novo marco é que a iniciativa privada vai resolver o problema e universalizar os serviços até 2033. A ANA [Agência Nacional de Águas] será responsável por normatizar o processo”. E foi categórica: “Tudo é muito bonito na teoria. Mas na prática o novo marco limita as condições de os municípios fazerem acordos com as estatais para que tomem conta do saneamento, o que será aceito até 2022. Essas empresas terão que fazer consórcios e até concorrer com a iniciativa privada, participar das licitações. Dizem que a concorrência vai induzir melhorias, mas não acredito que a iniciativa privada vá investir se não houver previsão de lucro, o que é próprio do regime capitalista”.
A engenheira apontou um dos grandes gargalos nesse modelo: a questão do subsídio cruzado pelo Estado. “Hoje o lucro das grandes cidades acaba sendo investido nas pequenas, muitas das quais dão prejuízo. O marco regulatório, que inclusive prevê exploração por blocos de cidades de maior e menor interesse econômico, vai impedir que isso ocorra.”
Por razões como essa, a nova lei enfrenta a oposição dos trabalhadores do setor. “Duvido que haja algum a favor da privatização. A tendência é que as empresas queiram concorrer nas grandes cidades, onde terá condições de obter lucro. Nas demais, tendo em vista que o custo da instalação da coleta e tratamento de esgoto é muito alto, vão querer investir?”, questionou, destacando ainda que o usuário é quem vai pagar a conta com tarifas que devem se elevar.
“Ouvi uma comparação sobre saneamento com o SUS [Sistema Único de Saúde]. O que aconteceria na pandemia se este não fosse do Estado? A situação é a mesma com água, vamos ter sérios problemas com isso. O ideal seria ter gestão eficiente dos serviços públicos, como ocorre na Sabesp”, explanou. E completou: “Outro comentário é que é como a cloroquina, o remédio que pode matar o paciente.”
A diretora do SEESP concluiu: “O Brasil está na contramão da história. No mundo, de 2000 a 2019, o saneamento era privatizado em 312 cidades de 36 países. A partir de 2010, foi reestatizado em 80% delas. A França foi uma das primeiras, dada a falta de transparência, dificuldades de monitoramento, tarifas muito altas. Outros exemplos são Holanda, Atlanta, Berlim, Budapeste, Buenos Aires, La Paz.”
Como asseverou Blockwitz, a experiência internacional, a médio e longo prazos, revela um cenário muito preocupante para o Brasil com o novo marco: desmantelamento de todas as empresas, que, quando e se devolvidas, voltarão sucateadas.
“Manaus é um exemplo. Foram 20 anos de privatização. Os índices de coleta e tratamento de esgotos são de 12,5%. Entre as dez piores, a capital do Amazonas é a sexta. Noventa e um por cento das reclamações no Procon [Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor] são em função do saneamento básico.”
Outro exemplo negativo no Brasil, citado pela engenheira, é no Estado do Tocantins, em que a iniciativa privada assumiu o serviço em 78 das 139 cidades. “Setenta por cento da população não tem coleta de lixo, esgoto e água tratada. Hoje 47 permanecem privatizadas.”
Ela vaticinou: “É um problema muito sério que não vai se resolver assim e ainda talvez se agrave.”
Ao final, Dessimoni, que é engenheira ambiental e sanitária especialista em resíduos sólidos, saudou o debate e convidou os profissionais da categoria a fortalecerem sua representatividade, associando-se ao SEESP.
Confira o webinar “A engenharia, o saneamento básico e os desafios urgentes do Brasil” na íntegra: