Antonio Ferro*
Meio de transporte de milhões de brasileiros todos os dias, o ônibus é reconhecido apenas por sua função de leva e traz, sem a percepção de ter a importância integrada ao cenário urbano. Sua reinvenção e de seus serviços é a premissa para garantir seu futuro e nossas cidades com inovação.
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Diante de um quadro nada animador para a mobilidade urbana, com um modelo que dá primazia ao transporte motorizado individual, com impactos de caráter aparentemente irreparáveis, quando não irreversíveis, o ônibus tem cumprido, bem ou mal, seu papel de transportar mais de 90% dos cidadãos que precisam se deslocar nas cidades brasileiras.
Apesar de sua importância nesse contexto, o modal vê sua participação reduzida ano a ano por uma competitividade crescente, seja pelo aumento do uso do automóvel motorizado ou por outros “concorrentes”, como os sistemas férreos, o transporte irregular, as motos, as bicicletas, a caminhada e o transporte por aplicativos. Há mais de 20 anos, 60 milhões de passageiros eram transportados por dia pelos ônibus urbanos brasileiros. Com o minguar do IPK (Índice de Passageiros por Quilômetro) nos sistemas, hoje o volume gira em torno de 40 milhões de pessoas que usam o modal (antes da pandemia), uma queda substancial de mais de 30%. E continua caindo, com um horizonte nada positivo quanto à reversão desse quadro negativo.
Essa informação deveria ter relevância para os poderes públicos municipais e para a sociedade. Afinal, o que está em jogo é um desenvolvimento urbano pautado pela racionalidade operacional e qualidade de vida. Enquanto os passageiros procuram alternativas para seus deslocamentos diários, como as lotações, o automóvel próprio, a motocicleta e os modos mais simples, como a caminhada ou a bicicleta, os serviços de ônibus “batem lata”, acabam deficitários e arcam com o prejuízo resultante da ineficiência de um modelo que se esgota a cada dia que passa.
Na perspectiva do passageiro, o declínio da imagem do modal está presente ano após ano, mesmo em alguns corredores que permitem alguns ganhos operacionais. Dormiu-se em cima dos louros por muito tempo, tendo a certeza do passageiro como cliente cativo. Vivemos novos tempos, em que o usuário ou o potencial cliente quer algo mais do que o simples vai e vem dentro de um veículo que não oferece comodidade. É indispensável repensar o transporte público como indutor da evolução das cidades, tendo uma nova imagem, de vanguarda e atraente. Não se aceita mais o simples fato de transportar. O passageiro não é uma mera carga. A prioridade por vias exclusivas (e também nas interseções) é uma premissa; a rede de serviço precisa ser integrada aos outros modais; o uso da tecnologia de informação e comunicação com o cliente é fundamental; o embarque e desembarque facilitado; a configuração veicular exige mudanças em relação à velha fórmula do embarque e desembarque feitos por portas com 0,60m de largura e escadas com degraus que atentam com a integridade física dos mais necessitados; e a gestão operacional precisa responder rapidamente aos problemas que surjam e, para isso, ferramentas tecnológicas se encontram à disposição na indústria nacional.
Na dinâmica da cena urbana, a tecnologia veio para colaborar com uma sociedade ditada pela velocidade e pela necessidade de se comunicar. Para isso, exige-se uma mobilidade inteligente, em que o ônibus inteligente possa ser inserido. Hoje, quando falamos do modal, temos que pensar em seu avanço, com aspectos de incentivo para que o usuário do automóvel se sinta atraído, como os ambientes internos agradáveis, com ar-condicionado, poltronas confortáveis e conexão para internet, dentre outros itens que permitam uma aproximação do conceito metroviário.
Dentro dessa nova lógica a ser adotada, a palavra marketing, que nunca foi um elemento atribuído à imagem do ônibus, torna-se indispensável para destacar positivamente os benefícios que esse transporte pode proporcionar, tanto em maior agilidade dos deslocamentos como em atributo ambiental. Deve-se agregar e explorar adjetivos como modernidade, rapidez e tecnologia à palavra ônibus. É comum vermos uma grande valorização e exposição dos sistemas sobre trilhos, como metrô, e agora o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), sendo reconhecidos como soluções de última geração, ao passo que a representação do ônibus ainda continua a ser vista como de um mal necessário.
Dependentes dos humores das administrações municipais, os serviços de ônibus carecem de méritos que o elevem a um patamar de qualidade, questão que envolve a gestão pública municipal na construção de uma relação transparente entre o seu ofício de fiscalizar, cobrar e organizar os serviços com a forma de operação, por meio de contratos que não ressaltem apenas a remuneração, mas sim objetivem benefícios sociais e à própria cidade. Nos processos rotineiros de hoje, não há previsibilidade e produtividade, resultando em serviços ruins e caros.
Decisões conjuntas são determinantes. A indústria nacional do modal, com competência ímpar, especialistas no assunto e os gestores públicos devem se unir para resgatar o tempo perdido e proporcionar transformações. Recursos humanos de qualidade são uma exigência. A capacitação profissional dos envolvidos é o básico para que se possa alcançar sucesso dessa nova imagem.
No debate das mudanças climáticas e da consciência ambiental, para se combater os efeitos negativos dos gases tóxicos, vindos dos sistemas de transporte, na saúde das pessoas e no cenário urbano, um extenso programa para empregar a tração limpa de mobilidade será via de regra, afinal, o Brasil é o único país que pode adotar em sua matriz energética os combustíveis verdes, a eletricidade e o biometano/gás natural, com viabilidade técnica e comercial reconhecida.
O investimento nessa reinvenção tem um preço e que passa, necessariamente, pela discussão do subsídio (ou recursos extras) à tarifa. E o custo desse subsídio deve ser socializado por todos, porque é consequência dele a manutenção do valor da tarifa em níveis atraentes para trazer mais usuários para o ônibus. E diferentemente de outros subsídios governamentais, que beneficiam apenas alguns grupos ou setores, a subvenção à tarifa do transporte público urbano tende a beneficiar toda a sociedade, diante do reflexo positivo da melhoria da mobilidade.
O tempo urge, e os centros urbanos precisam de soluções. O processo de urbanização só aumenta no País, e a insatisfação com um modelo arcaico de operação torna-se visível a cada dia. É necessário haver o compromisso para que o ônibus cumpra seu papel na revolução urbana. É preciso reinventar o modal. Os desafios são enormes nesse setor, e as respostas precisam de rapidez, assim como deve ser a operação do modal.
*Artigo publicado originalmente na Revista Autobus