A marginalização de pretos e pardos atende uma estrutura econômica de super exploração
Rosângela Ribeiro Gil
Oportunidades na Engenharia
* Imagem do destaque desta matéria é uma reprodução do portal do Senado Federal
“O Dia da Consciência Negra é o momento de refletirmos sobre a qual humanidade pertencemos e dizemos defender.” A provocação é da jornalista e ativista feminista-antirracista Cidinha Santos e é feita neste 20 de novembro, data instituída, em âmbito nacional, com a Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011, formalizando o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. Para ela, vencer o racismo estrutural, no País, exige o esforço de toda a sociedade e necessita de atenção todos os dias: “O racismo está no “DNA” da formação da nossa sociedade brasileira. Por isso, digo que é quase um ‘nascer’ de novo para acabarmos de vez com a violência que sofremos, pretas e pretos.”
Santos pede para que se faça um exercício simples de olharmos sempre ao redor, nos ambientes urbanos e de trabalho, “e observamos a ausência de pessoas pretas em diversos espaços e posições e, por outro lado, quando as vemos em quais ocupações elas estão”. A ativista critica que “não dá pra aceitar tanta invisibilidade estruturada econômica e socialmente. Somos mais de 50% da população, entre negros e pardos”. Por isso, ela acredita que a data “precisa ajudar a nos questionarmos sobre a mobilização da sociedade brasileira contra a morte de um negro estadunidense, que realmente precisa da nossa indignação, e ficar passiva diante das violências diárias sofridas pelos jovens trabalhadores e sobreviventes das nossas cidades”.
Toda a gente brasileira precisa falar mais sobre o que se naturalizou como normal que é ter “espaço de branco e espaço de negro” na sociedade, nos alerta a mestranda Helena Pontes dos Santos, pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Estudios Afrolatinoamericanos y Caribenos pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais [Clacso], a pesquisadora, na entrevista, a seguir, traz informações e reflexões importantes sobre a formação econômica e social brasileira. “Observando a história, em especial a história que a história não conta, fica bastante nítida a dívida que se tem com o povo negro”, destaca.
Esse termo procura explicar que a sociedade no sistema capitalista é estruturada com base na hierarquização de pessoas, com distinções entre elas de acordo com sua raça, favorecendo as pessoas brancas e desfavorecendo, na nossa realidade, indígenas e negras e negros. O racismo não é um problema individual ou meramente um desvio comportamental, como se insiste em colocar, pela ausência de uma educação antirracista. Ele é essencial para que o capitalista possa super explorar trabalhadoras e trabalhadores racializados.
Como identificá-lo no nosso dia a dia?
Apesar de sermos mais da metade da população brasileira, a maioria dos representantes no Congresso Nacional – mais de 90% - é branca. Se observamos os dados socioeconômicos de pessoas negras (pretos e pardos) e de pessoas brancas é visível e assustador o hiato que observamos. É possível notar, também, quando observamos a presença majoritária de pessoas negras nos postos de trabalho mais desprotegidos legalmente e precarizados.
Qual a diferença entre não ser racista e ser antirracista?
Não ser racista é a pessoa que não pratica racismo. Ser antirracista é ser alguém de fato envolvido na luta para se combater o racismo e, assim, se atingir a igualdade racial. É necessário se envolver no questionamento da falta de cidadania garantida à população negra, por exemplo, que segue sem ter acesso ao pleno emprego, saúde e educação de acesso universal e gratuito dentre outras determinações legais previstas, inclusive na constituição, mas que não chega à realidade da maior parte das pessoas negras.
A tortura, por exemplo, que chocou toda a sociedade realizada pelos órgãos de repressão estatal durante os anos de chumbo segue sendo constante nas periferias brasileiras e acontece pela mesma motivação. Assim, não ser racista é um não fazer, ao passo que ser antirracista é agir para que a gente construa uma sociedade em que, de fato, tenhamos todes, todas e todos acesso ao bem viver.
Entrevistamos engenheiras pretas que se formaram em ambientes onde eram minoria na sala de aula e com poucos professores pretos.
É importante que o debate sobre racismo esteja em sala de aula? Como? O debate sobre racismo deve estar presente nas salas de aula desde o ensino fundamental. É de suma importância que quem formula os currículos escolares respeitem a legislação vigente e insiram tanto a história de África (seus povos, sua cultura, suas filosofias e contribuições para a Humanidade), como também é importante que seja negritada a presença negra lhes retirando da invisibilização sistêmica, nos mais diversos campos e as contribuições de indivíduos e de coletivos negros para a construção de nosso país.
Como se faz o apagamento dos saberes de pretos e pretas numa sociedade como a brasileira?
O apagamento de saberes negros se faz de várias formas numa sociedade estruturada pelo racismo, como é a nossa.
O Epistemicídio Negro se dá pela invalidação dos saberes negros, por cerceamento de produções e divulgação de conhecimentos, seja pela invalidação, pela contestação, bem como pela não inserção das produções negras nos espaços de produção de saberes tradicionalmente validados pela branquitude como, por exemplo, a academia.
Lélia Gonzalez, intelectual e ativista negra, tem uma produção intelectual riquíssima, porém seu reconhecimento, até pouco tempo atrás, se limitava a quem militava nos Movimentos Negros e Movimentos Sociais. Veja, é dela a criação de conceitos e categorias que atualmente são muito valorizados nesses espaços como amefricanidade e lugar de fala. Mesmo assim ela não era estudada, seus textos não estavam nas grades de ensino superior e seus saberes invisibilizados.
Outro exemplo é o que enfrentou Zózimo Bulbul durante a ditadura militar [de 1964] e que o levou a sair do País. Ele foi coprodutor de um filme importantíssimo chamado Compasso de Espera, no qual questiona a democracia racial brasileira. Em que pese o filme ter passado pela censura, demorou anos para ser liberado. Um filme importantíssimo, baseado nas pesquisas que Florestan Fernandes e Roger Bastide desenvolveram sobre desigualdade racial no Brasil.
O que eu posso fazer com relação a isso? Apontar a ausência de intelectuais, conhecimento e produção negra é um ótimo começo. Outro exemplo do apagamento de saberes e contribuições negras é quando pensamos em André Rebouças, engenheiro brasileiro, que dá nome a diversas avenidas, ruas e outras sítios públicos, sem que a maioria da população saiba que esse era um homem negro.
Como eu, classificada pessoa branca, posso ter atitudes racistas sem ter plena consciência dessa atitude?
Somos sociabilizados nessa sociedade de forma machista, racista, capacitista e LGBTQIA+fóbica. Somos criados para sermos preconceituosos e nos dividirmos. Isso é essencial para a superexploração da força de trabalho, essa fragmentação da classe trabalhadora e sua subdivisão interna que nos organiza hierarquicamente. Reconhecer como o sistema capitalista nos divide é um passo importante, penso.
Para além disso, estar atento ao que pessoas negras falam, escrevem, apontam para os brancos como sendo algo racista. A falta de consciência da atitude racista, essa irresponsabilidade branca, como aponta James Baldwin no documentário “Eu não sou seu negro”, é algo inadmissível.
Como as pessoas são torturadas e mortas em diversas chacinas nos bairros periféricos e não questionamos isso; como não sabemos a versão dessas pessoas e acatamos facilmente a versão do Estado? Como seguimos vivendo nossas vidas sem questionar a ausência de pessoas negras dando aulas, ou nas direções sindicais quando é negra mais de 50% da população?
Romper com o pacto narcísico da branquitude é essencial. Sobre isso, Cida Bento tem produção muito interessante e que pode auxiliar nesse processo individual importante também.
O que está errado nesta frase: Não ser racista é ser politicamente correto?
Sei que não se responde uma pergunta com outra, mas será necessário. Eu pergunto: O que está errado na frase: não ser antissemita é ser politicamente correto? Não ser racista é respeitar a humanidade no outro, como não ser antissemita. Não deveria ser algo difícil de se compreender em pleno século XXI, não é mesmo?
Qual a dívida que o Brasil tem com o povo preto?
Todos aprendemos na escola que Dom João VI ao retornar à Portugal levou todas as riquezas que havia no Banco do Brasil, bem como tudo o que conseguiu de valioso nos porões do navio, certo? O Brasil foi deixado falido pela família real portuguesa. É o que estudamos desde sempre.
Após isso veio a Independência. O filho do rei de Portugal ficou, proclamou. Depois disso, veio seu filho a ser imperador. No final do império e início da República foi realizada a política de imigração, para satisfazer o projeto de embranquecimento da população brasileira e dizimação do povo negro, negrite-se. Considerando que o país nasce falido e que quem trabalhava naquele período eram só as pessoas negras escravizadas, não parece ser muito difícil compreender que foi o fruto da exploração do trabalho da população negra não só construiu essa nação como, também, permitiu o custeio da vinda de imigrantes para cá.
Apesar de toda essa contribuição, a ideologia racista coloca essas pessoas como inferiores, apesar de nitidamente ter sido os frutos de seu trabalho explorado que deu condições, inclusive desse país ser o que é, como dos países europeus acumularem capital para realizarem a Revolução Industrial.
A dívida com o povo negro é essa. Esse povo que construiu o país, após a abolição – conquistada pela metade, sem reforma agrária e/ou indenização pela expropriação de sua força de trabalho, até então escravizada pela elite nacional – foi deixado a sua própria sorte.
Essas pessoas não só tiveram que disputar espaço no mercado de trabalho que se constituía com pessoas brancas e que eram preferidas pelos contratantes, como tiveram leis que as impediram de exercer certos ofícios, bem como de estudar ou adquirir terras. Ou seja, a marginalização da população negra não foi algo que aconteceu, mas um projeto pensado e executado pela classe privilegiada branca brasileira. Observando a história – em especial a história que a história não conta – fica bastante nítida a dívida que se tem com o povo negro.