O Carnaval fracassou. Um conto ou livro de ficção poderia começar com essa frase. Afinal, o Carnaval nunca fracassa. A maioria de nós provavelmente nunca pensou nisso: nunca houve um Carnaval que tivesse fracassado e provavelmente jamais haverá. Aliás, as duas palavras soam incompatíveis. Seria necessária uma breve reflexão acerca das condições nas quais o Carnaval fracassaria.
O Carnaval é um evento nacional. Ainda que a mídia dê uma enorme ênfase aos Carnavais do Rio de Janeiro, da Bahia e de Pernambuco, ele acontece em todos os Estados brasileiros e em todas as cidades. O fracasso do Carnaval, para que fosse noticiado dessa maneira, teria que ser um fenômeno nacional. Igualmente importante é que o Carnaval é um evento muito mais social do que estatal. É verdadeiro que as prefeituras patrocinam inúmeros desfiles, em todas as cidades do Brasil. É igualmente correto afirmar que os governos estaduais são peças importantes no financiamento de vários eventos carnavalescos. Ambos, governos estaduais e prefeituras, estão atendendo a uma demanda social de grande relevância. Não apoiar o Carnaval é algo que vai contra o governante. Se não o fizer, sofrerá desgaste junto a seus eleitores.
O caráter social do Carnaval fica evidente em todos os desfiles que ocorrem: o Bola Preta e o Galo da Madrugada no sábado, as escolas de samba do Rio de Janeiro, os trios elétricos da Bahia, os blocos de frevo de Pernambuco, os inúmeros blocos de sujos e de piranhas que saem em centenas ou milhares de cidades brasileiras, tudo isso só é possível porque milhões de pessoas se mobilizam para a festa. Essas pessoas economizam dinheiro durante o ano para comprar ou confeccionar suas fantasias, pagar a viagem de Carnaval, comprar o abadá. Outros dedicam seu tempo para ensaiar com os demais músicos da banda de que participam, ou para memorizar o samba de sua e de outras escolas. O Carnaval só fracassará quando essa enorme ação coletiva deixar de existir.
Outra característica que impede que o Carnaval fracasse é que ele é carnavalizado. Isso mesmo, o Carnaval é carnavalizado. Muito dificilmente algo carnavalizado fracassa. Carnavalização é a celebração do riso e do cômico, é a subversão da ordem estabelecida por meio da sátira da realidade, por meio da realização do que não se faz durante a maior parte do tempo. A carnavalização é a realização do aspecto festivo da vida. Carnavalizar é relacionar extravagância e simplicidade, erudito e popular, exótico e banal, é misturar classes sociais, etnias e idades, é mesclar estilos, é quebrar tabus e liberar energia, instintos e desejos que em geral são disciplinados pelo oficialismo que rege o mundo a maior parte do tempo.
Não há a menor dúvida de que nossa Copa do Mundo será um evento nacional, social e carnavalizado e, assim sendo, não tem como fracassar.
Toda Copa do Mundo em qualquer país que seja, já é um evento nacional. No Brasil, serão 12 sedes que contemplarão todas as regiões do país. Haverá jogos em Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Natal, Fortaleza, Brasília, Manaus e Cuiabá. Os brasileiros de todas as regiões terão a chance de estar próximos de uma das sedes, alguns irão aos estádios, muitos terão a chance de acompanhar os jogos em áreas públicas perto dos estádios, especialmente preparadas com telões, bares, restaurantes e toda a estrutura necessária para atender aos apaixonados por futebol carnavalizado.
Mais do que nacional, a Copa do Mundo, no país do futebol, será um evento social. As pessoas se mobilizarão para acompanhar os jogos, vão economizar para pagar suas viagens rumo às cidades-sede, para ver várias seleções em suas concentrações, obter autógrafos de estrelas do futebol. Não haverá indiferença, não apenas a respeito de nossa seleção, mas acerca de todas as delegações que desembarcarão no Brasil para disputar o torneio.
O motivo mais importante que impedirá o fracasso de nossa Copa do Mundo é que ela será carnavalizada. Vale repetir, a Copa é o maior evento do mundo do futebol que ocorrerá no país do Carnaval e do futebol. Ora, isso não pode ser desconsiderado. Quem ignora essa combinação não sabe o que faz o Brasil, não compreende nossas especificidades.
A primeira inversão da ordem - carnavalização - de uma Copa do Mundo é parar de trabalhar para assistir aos jogos de nossa seleção. Isso acontece em qualquer Copa do Mundo, mas tenderá a ser mais acentuado em 2014. Vamos parar de trabalhar para festejar, para nos reunirmos com os amigos em bares, em residências, em locais privados e públicos, com a prosaica finalidade de assistir a um jogo de futebol. As ruas ficarão desertas. As rodoviárias, aeroportos, locais públicos utilizados pelas pessoas para ir e vir em dias de trabalho ficarão à míngua de gente. As aglomerações ocorrerão apenas na frente de TVs e telões. Não parece que os americanos ou os alemães pararam de trabalhar para ver suas seleções jogarem em 1994 e em 2006.
Uma segunda carnavalização da Copa do Mundo é a forma como tomamos nossas ruas. Em períodos normais, é ilegal pintar meios-fios ou decorar as ruas com bandeirinhas, mas isso é permitido durante a Copa do Mundo. As ruas da maioria das cidades se tornarão palco de uma competição pública para se ver qual será a mais bem enfeitada. Jovens de todas as classes sociais se mobilizarão para arrecadar dinheiro para comprar tinta, tecidos e plásticos verde e amarelo, e vários artefatos decorativos. As prefeituras não vão multar ninguém por pintar e decorar as ruas. Além disso, como americanos no feriado de sua independência, muitos de nós iremos pendurar uma bandeira do Brasil na janela ou na porta de casa, e compraremos fogos de artifício para utilizá-los nos gols que imaginamos que a seleção fará.
Quem conhece e entende o Brasil sabe que a carnavalização do evento é inevitável. Até mesmo o pôster oficial da Copa, lançado na semana passada pela Fifa, está dentro do espírito carnavalesco. Assim como no Carnaval, a Copa do Mundo será um momento de um estado de espírito diferente. A vida normal será suspensa, será colocada dentro de parêntesis, que durarão desde pouco antes do início do evento até quando nossa seleção ainda estiver na disputa. É óbvio que a expectativa é que cheguemos à final. Tomara que não encontremos a Argentina de Messi pelo caminho.
O sr. Jérôme Valcke insiste em dar broncas no Brasil porque, como um bom suíço, ele não faz a menor ideia do que seja a carnavalização. Este artigo é carnavalizado, ele une o nosso Carnaval ao nosso esporte nacional utilizando como elo a incidência de cirurgias plásticas no Brasil. Trata-se de uma linguagem alegórica com a finalidade de mostrar nossas especificidades. Linguagem esta que é carnavalesca e, portanto, só permitida em um sóbrio jornal de negócios como o Valor em uma sexta-feira que antecede o Carnaval. Acaba de ser divulgada a pesquisa mundial sobre cirurgias plásticas estéticas. As brasileiras, comparadas com mulheres dos Estados Unidos, México, Itália, França, Alemanha e Espanha, preferem as cirurgias de aumento das nádegas e redução dos seios. Naqueles países, comparando-os com o Brasil, as mulheres preferem cirurgias de aumento dos seios.
Até mesmo nos procedimentos médicos estéticos nossa especificidade é revelada. A preferência das brasileiras está relacionada com o nosso jogo de cintura futebolístico, com o drible, com a pedalada, com o samba no pé, tem a ver com o Carnaval e com o futebol. Na França, Delacroix pintou a Liberdade guiando o povo na figura alegórica de uma mulher do povo, robusta, com os seios de fora e pisando em cadáveres com os pés descalços. Dificilmente um quadro desse tipo teria no Brasil o sucesso de que desfruta na França.
Aqueles que insistem em não compreender o Brasil e suas especificidades carnavalescas, futebolísticas e estéticas ficarão surpresos com nossa Copa do Mundo. Eles se comportam como o Narciso às avessas de Nelson Rodrigues, aquele que sofre do complexo de vira-latas e vive cuspindo em sua própria imagem. Insistem em afirmar que nossa Copa será um fracasso. A inauguração dos primeiros estádios já ajudou a diminuir sua desenvoltura crítica. Os ataques que até pouco tempo eram contra tudo e contra todos agora se restringem aos aeroportos e à recém-batizada "mobilidade urbana". Já deram o braço a torcer à eficiência desconcertante dos nordestinos do Ceará, que foram os primeiros a entregar um estádio da Copa pronto. Todos ficarão prontos a tempo e provavelmente não ocorrerão problemas de transporte e deslocamento que venham a resultar na frase inicial deste artigo: a Copa do Mundo fracassou.
Dedico este artigo a Roberto DaMatta.
* por Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" e "O Dedo na Ferida: Menos Imposto. Mais Consumo". E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. www.twitter.com/albertocalmeida. Artigo originalmente publicado no jornal Valor Econômico, em 08/02/2013
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