Depois de analisar situações de violência que envolveram mulheres na região sul do Mato Grosso, entre 1830 e 1889, a historiadora Marinete Rodrigues, residente no estado do centro-oeste que serviu de cenário à pesquisa, questiona afirmações de que as mulheres do passado eram submissas. “Trata-se de um grande erro”, afirma. Segundo a pesquisadora, os documentos mostram que a realidade era outra. “Elas estavam cientes das dificuldades e lutavam, já naquela época, para remover os obstáculos. Acredito que devemos romper com a ideia de que as mulheres só começaram a reagir contra as imposições e arbitrariedades a partir do movimento feminista. Estamos negando às nossas antecedentes o direito que lhes cabe por terem lutado contra qualquer tipo de violência”.
Na tese de doutorado Mulheres, violência e justiça: crime e criminalidade no sul do Mato Grosso, 1830 a 1889, Marinete desvenda os contraditórios papéis de vítimas e algozes pertencentes à várias moradoras da região, aborda como os homens e as instituições faziam uso da agressividade para o controle social das localidades em que residiam, e mostra que traços comportamentais daquela época ainda persistem nos casos de violência doméstica da atualidade.
A partir da análise dos documentos do Memorial do Tribunal de Justiça de Campo Grande e de outras cinco comarcas, a pesquisadora observou que as situações violentas eram promovidas de maneira corriqueira naquele período histórico da região. Compreender o processo de desencadeamento dos conflitos e de emprego da violência foram alguns dos principais objetivos do estudo. “Não acreditava que a violência era uma consequência da pobreza ou das influencias do escravismo, ou ainda do processo de modernização de uma dada sociedade”, afirma Marinete. “Sei que todos esses fatores são extremamente relevantes e contribuíam muito para acentuar os quadros da violência, entretanto eu queria ir mais fundo e poder constatar não os motivos que geravam os conflitos, mas o que significava justiça, violência e crime para aquelas mulheres e homens. Queria constatar que existe na sociedade brasileira uma cultura da violência permeando as relações institucionais, familiares e até mesmo religiosas. Daí a importância de se discutir o tema com mais profundidade e transparência”.
Sexo frágil?
O ponto de partida para a elaboração do trabalho se deu quando a pesquisadora ainda estava no 2º ano do curso de História, em 2003. Ao conhecer o Memorial ao lado de sua futura orientadora de doutorado, a professoa Nanci Lonzo, Marinete começou o processo de pesquisa sobre o tema, a partir da transcrição dos primeiros processos-crimes envolvendo mulheres. Nessa atividade, ela percebeu que havia peculiaridades no perfil daquelas cujos nomes constavam nos processos. “Duas questões me chamavam a atenção: a primeira era que a violência estava presente na vida de mulheres pobres e ricas; solteiras, casadas e viúvas; livres e escravas; brancas, negras e indígenas. A segunda questão era que as mulheres não eram apenas vítimas dessa violência: elas revidavam, reagiam e inventavam novas formas de defesa e resistência contra a violência física e simbólica. Não eram vítimas passivas diante da cultura da violência institucionalizada”.
Cultura antiga
O tema do estudo — a violência que envolvia mulheres de todos os tipos sociais no Mato Grosso — se torna relevante por sua atualidade. Há a análise de um pequeno universo, mas que é representativo de um contexto maior. Em seu trabalho, a pesquisadora mostra que o culto à domesticidade e à dominação do homem é algo bastante visível nos dias atuais e que pode ser notado na análise dos índices de violência doméstica.
Para Marinete, existe uma cultura de violência regendo nossas atitudes, sobretudo na violência contra as mulheres, as crianças e os idosos. “É preciso mudar essa cultura. Mas, isso só vai acontecer quando nos conscientizarmos de que a violência não é consequência de atos individuais. Ela é uma estrutura bem organizada que se instalou nas instituições sociais, econômicas, políticas, ideológicas, culturais e judiciais. Somente por intermédio da educação em todas as dimensões da vida em sociedade é que podemos modificar o que está posto”.
Fonte: Agência USP de Notícias