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Engenharia - Omissão do Estado e falhas técnicas podem ter causado catástrofe em Mariana

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Soraya Misleh

“Um desastre anunciado.” Assim o promotor de justiça Carlos Eduardo Ferreira Pinto, do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), classifica a ruptura da barragem do Fundão em 5 de novembro último. Em funcionamento desde 2008 e em obras para ampliação de sua capacidade, o empreendimento da Samarco Minerações pertencente ao Complexo Germano-Alegria, no município de Mariana (MG), era considerado pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) como de dano potencial alto, mas risco baixo. As causas do rompimento de uma barragem com essa característica ainda estão sendo investigadas, e a expectativa, segundo Ferreira Pinto, é que a análise seja concluída em dois meses. Os indícios são de que houve falhas técnicas e no controle e comando do Estado.

“Houve uma série de erros, desde a implantação da barragem. O órgão ambiental concedeu licença de instalação sem que fosse apresentado projeto executivo. Significa dar um cheque em branco ao empreendedor, uma grave omissão do Estado, cuja fiscalização da obra também não funcionou, por falta de estrutura. São mais de 700 barragens em Minas Gerais e apenas dois técnicos para fiscalizar, situação que se repete em todo o País. Também não havia um plano de ação de emergência.” Essas ações estão previstas na Lei Federal nº 12.334/2010, que instituiu a Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB).

Em 2013, a Samarco requereu renovação da licença de operação (LO) do complexo, que incluiria a ampliação da capacidade da barragem (alteamento). O MPMG solicitou então ao Instituto Prístino laudo técnico. Apresentado em 18 de outubro daquele ano, esse alertava para a possibilidade de colapso da estrutura. Uma das razões era a proximidade entre a barragem do Fundão, para disposição de rejeitos de minério de ferro da Samarco, e área pertencente à Pilha de Estéril União, da Mina de Fábrica Nova da Vale S/A – em que se acumulavam rochas sem minério. “Notam-se áreas de contato entre a pilha e a barragem. Esta situação é inadequada para o contexto de ambas estruturas, devido à possibilidade de desestabilização do maciço da pilha e da potencialização de processos erosivos. Embora todos os programas atuem na prevenção de riscos, o contato entre elas não é recomendado pela sua própria natureza física. A pilha de estéril requer baixa umidade e boa drenagem; a barragem de rejeitos tem alta umidade (...)”, indica o documento, que recomendou a apresentação de estudos “sobre os possíveis impactos do contato entre as estruturas”, bem como que a Superintendência Regional de Regularização Ambiental Central Metropolitana (Supram-CM) se manifestasse “tecnicamente sobre a segurança da interação entre os empreendimentos”. O laudo  fundamentou parecer do MPMG, datado de 24 de outubro de 2013, no qual tais recomendações são reiteradas e é proposta a inclusão de uma série de condicionantes relativas à garantia da segurança da obra para revalidação da LO. Entre elas, a realização de “monitoramento geotécnico e estrutural periódico dos diques e da barragem, com intervalo máximo de um ano entre as amostragens”.

Questionada a respeito, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (Semad), por intermédio de sua assessoria de imprensa, afirmou: “A barragem do Fundão estava com o licenciamento em dia e todas as condicionantes foram cumpridas. Foi auditada em julho de 2015 e o relatório foi entregue à Feam (Fundação Estadual do Meio Ambiente) em setembro.” Segundo o órgão, a conclusão foi pela estabilidade da estrutura, mas com recomendações quanto à “estabilidade física”. “O cronograma para implantá-las iniciou-se em 10 de setembro com previsão para conclusão entre 31 de dezembro de 2015 e 31 de dezembro de 2016.” A barragem, ainda conforme a Secretaria, havia sido fiscalizada pela Feam em outubro de 2014. “Estava no planejamento da fundação outra vistoria para dezembro deste ano.” A assessoria do órgão destacou, todavia, que a responsabilidade legal pela segurança das barragens é do empreendedor.

Cortes na engenharia
Para o professor Carlos Barreira Martinez, coordenador do Centro de Pesquisas Hidráulicas e Recursos Hídricos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), uma série de fatores levou ao desastre, cujo gatilho seria a sequência de pequenos abalos sísmicos ocorridos poucas horas antes. Criticando também a falta de fiscalização pelo Estado e atribuindo-lhe responsabilidade, contudo, ele é categórico: “Se o esquema construtivo fosse outro, existe a possibilidade de que esse evento catastrófico não acontecesse.” A referência é à técnica adotada pela Samarco para ampliação da capacidade da barragem do Fundão, denominada “alteamento a montante”. Embora seja prevista em norma, para Martinez, não deveria ter sido utilizada nessa obra. “Como engenheiro, eu não recomendaria. Seria a jusante, mais apropriada para esse caso.” Especialista em segurança de barragens, o engenheiro civil Daniel Prenda de Oliveira Aguiar concorda e explica: “Nesse processo (a montante), a barragem original recebe um novo aterro, avançando para dentro do reservatório em relação ao dique de partida, com a finalidade de acumular mais materiais. É utilizado como base de suporte o próprio rejeito, após um processo de drenagem e compactação. Mesmo tomando todas as medidas de controle e segurança durante a obra, esse processo não é recomendado devido ao risco que oferece. As chances de ocorrer percolação (infiltração) de água pela interface entre os sucessivos alteamentos é alta. Com isso, pode ocorrer desestabilização do maciço e perda da capacidade de suporte da fundação. Esse já é um importante fator de risco.” Associado a tal fato, Aguiar assevera que “as barragens de terra e enrocamento são naturalmente mais suscetíveis a erosões internas, sendo necessário um bom sistema de impermeabilização interna e filtragem para rebaixamento do lençol freático, ou seja, impedir que a água infiltre internamente à estrutura de terra. No método aplicado, dificilmente se consegue isso, tendo que se confiar somente nos filtros. O de alteamento a jusante é considerado o mais seguro, porém, por ser também o mais caro, raramente é aplicado”.

Também especialista em segurança de barragens, o engenheiro civil Euclydes Cestari Junior informa que a economia com o método adotado é da ordem de 70%. Mas pondera: “A engenharia utiliza essa técnica com sucesso. O problema é que você tem que ter uma gestão da operação da barragem. Não pode ser feito sem critérios técnicos.” Embora não veja problemas com a utilização de alteamento a montante, ele frisa que tal obra, que incluía instalação de instrumentos e vinha sendo feita conjuntamente com a manutenção de filtros, requereria cuidados especiais, os quais podem não ter sido tomados. “Se rompeu, é porque houve falha.” Cestari aponta a falta de projeto executivo, verificada pelo MPMG, como uma delas. “Talvez a empresa tenha ficado apenas com o básico para economizar”, o que, atesta ele, compromete a segurança. “É como levantar um prédio de dez andares. Se fizer com critérios técnicos, não vai acontecer nada. Agora, se levantar um de três andares sem isso, vai cair. Está se economizando na engenharia. É preciso contratar profissionais com acervo técnico, com renome, e isso custa. O Crea (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia) tem que ser mais rigoroso, tem que fiscalizar e punir empresas que fazem as coisas sem engenharia.”

Para Cestari, os abalos sísmicos por si só não representam riscos. “Na região de Paraibuna (SP), tem vários e tem a barragem da Cesp (Companhia Energética de São Paulo). Toda vez que ocorre um, os técnicos inspecionam. Nas barragens em que há gestão de segurança, nada acontece.” O Centro de Sismologia da Universidade de São Paulo (USP) divulgou boletim em que informa que a Rede Sismográfica Brasileira (RSBR) identificou seis tremores de terra de baixa magnitude (de aproximadamente 2,5 graus na Escala Richter) próximos à mineração Samarco, entre Catas Altas e Bento Rodrigues, na data. Esses pequenos abalos, segundo o comunicado, “não são incomuns no Brasil e mesmo em Minas Gerais (...). Ocorrem praticamente todos os dias. (...) Normalmente, tremores de magnitude três ou menores não causam danos diretamente em estruturas e construções e são sentidos apenas levemente”. Engenheiro de segurança do trabalho, o vice-presidente do SEESP, Celso Atienza, enfatiza: “Não é algo que podemos chamar de acidente. Com certeza, já havia sinais de problemas na estrutura. Um rompimento não ocorre de uma hora para outra, dá avisos.” Ele critica ainda a falta de um plano de ação de emergência.

A barragem de Germano, parte do complexo, pode ter sido afetada e estar em risco. A imprensa divulgou imagens aéreas de trincas no empreendimento, inclusive com danos na estrutura de aproximadamente três metros de comprimento. “Se há tal trinca, é preciso fazer reparos para ontem, urgentemente”, salienta Cestari. A Semad admite as trincas, mas afirma que “estão sendo monitoradas e não comprometem sua estrutura de imediato”.

O rompimento da barragem do Fundão atingiu até o momento cerca de 40 cidades entre Minas Gerais e Espírito Santo. Segundo laudo técnico preliminar do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), com graves impactos ambientais, econômicos e sociais, atingiu diretamente 663,2km de corpos hídricos, ao lançar no meio 34 milhões de metros cúbicos de rejeitos, e 16 milhões de m3 continuam a ser carreados a jusante e em direção ao mar. Em 27 de janeiro, vazamento de rejeitos acumulados acendeu novo sinal de alerta em Mariana. “O desastre continua em curso”, conclui o laudo do Ibama.

É o que evidencia visita feita pela reportagem do JE em 17 de dezembro último a um dos locais mais atingidos – o subdistrito de Mariana, Bento Rodrigues, onde morreram 17 pessoas e 82% das edificações foram destruídas. Um mês e meio após a catástrofe, o cenário era de “terra arrasada”. A população – no total, 600 habitantes – ainda está em abrigos provisórios.

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