Rita Casaro
Iniciativa de um visionário, o engenheiro Antônio Francisco de Paula Souza, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) nasceu em 24 de junho de 1899, ainda como um gabinete de resistência de materiais dentro da Escola Politécnica, que também havia sido criada por ele, em 1893, e passaria a integrar a Universidade de São Paulo (USP) em 1934. “Ele sabia que para apoiar a indústria precisava ter laboratórios testando, porque sem qualidade não teria progresso”, ressalta Liedi Bernucci, presidente da instituição desde fevereiro de 2022.
Passados 125 anos, afirma ela, o IPT segue fiel à visão que o criou, contribuindo com avanços em pesquisa e desenvolvimento em inúmeros setores, fazendo com que o conhecimento tenha aplicação prática e gere riqueza às empresas e à sociedade. “Faz essa ponte da ciência básica à tecnologia, faz inovação”, resume a engenheira, que é professora titular da Poli e já foi chefe do Departamento de Engenharia de Transportes, vice-diretora e diretora da instituição, tendo sido a primeira mulher a ocupar o cargo em 124 anos.
Conforme Bernucci, hoje o IPT atua nas mais diversas áreas, da otimização da produção de etanol, pesquisas em transição energética e preservação da Amazônia, aos xenotransplantes e armazenamento de dados em DNA, além da prestação de serviço em acreditação e metrologia. Para dar conta das tarefas conta com quadro de 1.100 profissionais, entre concurdados, contratados via Fundação do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (FIPT) e terceirizados. O orçamento anual total é de cerca de R$ 223,8 milhões, incluindo a dotação orçamentária do Etado (R$ 139,4 milhões) e recursos próprios (R$ 84,4 milhões).
Parte das atividades acontece por meio do IPT Open, programa de parcerias com outras instituições e empresas. A iniciativa foi alvo de questionamentos recentemente devido ao convênio com o Google, que usará as instalações do instituto para uma área de engenharia voltada a inteligência artificial. “Nós não estamos falando de privatização. Esses parceiros vão ajudar nos nossos desenvolvimentos. Os governos passam, o IPT fica. Não é real estate que a gente está fazendo, [mas sim] pesquisa, desenvolvimento e inovação”, contrapõe Bernucci.
Nesta entrevista ao Jornal do Engenheiro, além de enfatizar a imparcialidade e autonomia do IPT, ela conta a história da instituição, que, por exemplo, fez os primeiros protótipos de aviões nos anos 1930, e aborda os temas complexos hoje na agenda do planeta. Bernucci fala ainda sobre o desafio de ter mais equidade de gênero na engenharia. “Minha batalha é em cima disso, que as mulheres tenham o seu espaço, sem preconceitos, sejam respeitadas e possam demonstrar o seu talento e a sua competência.” Confira a seguir e no vídeo ao final.
Como nasceu o IPT e com qual missão?
O IPT nasce em 1899, dentro da Escola Politécnica, [que havia sido] fundada por um engenheiro, que é o professor Paula Souza, em 1893. Paula Souza era uma pessoa à frente do seu tempo, um visionário que queria para o Estado de São Paulo riqueza industrial e sabia que precisava de tecnologia, portanto, de engenheiros. Ele foi uma das pessoas que batalhou pela República, era um abolicionista, um engenheiro e um homem público. Assim, ele funda a Escola Politécnica e sabia que para apoiar a indústria precisava ter laboratórios testando qualidade de materiais, porque sem qualidade não teria progresso, não teria como essa indústria ser poderosa. É o que ele queria: formar os alunos com uma vertente também experimental, não só teórica, e ao mesmo tempo dar base para a indústria. Então ele faz o primeiro laboratório, que é o Gabinete de Resistência dos Materiais, em 1899. Esse é o berço do IPT. Ele vai aumentando de tamanho, vai criando várias outras áreas, passa a ser um laboratório em 1931. Em 1934, com a fundação da Universidade de São Paulo, o IPT torna-se autônomo para que pudesse atender já a indústria, o governo, entender das políticas públicas, ter essa missão no seu coração. Então, ele se separa da Universidade de São Paulo, embora continue apoiando para o ensino, mas com essa vertente, essa missão de apoiar o desenvolvimento tecnológico para gerar riqueza, e não só a de poucos, mas criando empregos, a riqueza da sociedade.
Ou seja, a visão que criou o IPT segue convergente com o que se defende hoje, que é unir indústria, poder público, universidades, institutos de pesquisa para impulsionar o desenvolvimento.
Exatamente, há mais de um século, ele entende o que está no âmbito da teoria, no âmbito da ciência, e o que é ciência aplicada, tecnológica. E, do outro lado, a política pública e as indústrias, as companhias. Então ele faz essa ponte da ciência, porque a ciência básica dá conhecimento sólido, [com o qual se] desenvolve a tecnologia, faz inovação. A hélice tríplice já existia naquela época na cabeça desses visionários que fizeram de São Paulo um estado tão forte.
E como tem sido a atuação desde então?
O IPT tem uma história riquíssima em várias áreas; começa lá na construção, depois metalúrgica, é responsável por várias coisas. O IPT fez, inclusive, as primeiras normas técnicas, ou seja, ele rege qualidade desde o seu começo: consegue conceber métodos e estes tornam-se normas técnicas. O IPT, por incrível que pareça, fez também os primeiros aviões; na década de 1930, ainda, fez 20 protótipos. Na área metalúrgica, começa a trabalhar muito cedo, fazendo as primeiras ligas de chumbo. E hoje a gente vê, portanto, essa base que a história nos deu para nossa atuação, nós alargamos os horizontes. Temos a área de energia, por exemplo, que antes atuava em várias questões, inclusive de óleo, gás e distribuição, mas hoje também abre um outro foco que é a transição energética necessária, inclusive em hidrogênio de baixo carbono, com quatro diferentes rotas. Uma área que cresceu muito, que talvez as pessoas desconheçam, é a de biotecnologia, não só em processos industriais, mas na saúde também. Nós temos trabalhos na política pública muito importantes. O IPT é muito conhecido pelo mapeamento de riscos, problemas de deslizes. Em São Sebastião, no ano passado, o IPT esteve presente para auxiliar a população, a Defesa Civil e o próprio governo para dar as melhores soluções. Agora, nessa tragédia recente do Rio Grande do Sul, o IPT também estava presente.
Como é o modelo de gestão e custeio do IPT?
Nós somos uma empresa pública, desde 1975 dependente do Estado, mas é uma dependência relativa, porque uma parte da dotação vem do governo e uma parte da receita é por prestações de serviços e por pesquisa e desenvolvimento. Tem várias áreas de atuação, como acreditação; o IPT é muito conhecido na área metrológica: o Inmetro nasce desse conhecimento que o IPT tem na área metrológica. O IPT foi o primeiro a adquirir um metro e um quilograma padrão para poder dar essa base tecnológica no Estado de São Paulo e no Brasil. E hoje a área metrológica está em várias outras, não só de acreditação e de homologação de alguns equipamentos etc., mas em diferentes áreas, [como a] farmacêutica; na transposição do Rio São Francisco estava lá o pessoal da metrologia. Mas também está se reinventando, fazendo automação, recolhimento de dados e análises a distância.
Foi divulgada uma parceria entre o IPT e o Google, que criaria nas instalações do instituto uma área de engenharia para desenvolvimento de trabalhos em inteligência artificial. Isso foi divulgado pelo governo como uma parceria muito interessante, mas também houve uma certa polêmica e levantaram-se preocupações quanto a estar havendo uma privatização do IPT.
O IPT, como eu contei, trabalha para a indústria há 125 anos. Então a indústria sempre esteve dentro do IPT, contratando, vindo a equipe para olhar, para discutir, muitas vezes trabalhando em conjunto. Qual é a mudança que houve em 2019 com o IPT Open Experience, que hoje [chama-se] só IPT Open? É você trazer a inovação aberta e trazer o parceiro para dentro do IPT. Ou seja, o parceiro sempre existiu, está há 125 anos conosco. Há cinco anos, quando tinha 120 anos, resolveu-se pegar alguns espaços para que instalassem a área de P&D, ou seja, pesquisa e desenvolvimento com inovação aberta. Não uma área de escritório ou business, mas tecnológica. Alguns projetos [os parceiros vão] fazer conosco, alguns com outros e alguns com eles próprios. Isto não é só o Google, nós temos outros parceiros que já estão lá dentro. Eu entendo o temor das pessoas da questão de privatização, entendo perfeitamente. Os governos passam, o IPT fica. Na verdade, esse é um programa de Estado, não de governo. Por que eu digo que é um programa de Estado? Porque é um avanço você trazer inclusive startups, fazer novos negócios para que se amplie o leque tecnológico no País. Ou seja, a gente quer um ganha-ganha. E se tem uma coisa que para nós é muito importante é a nossa autonomia, de pensamento, de ação, essa nunca pode ser perdida. Por exemplo, houve um acidente do Metrô. Quem nos contratou foi a Secretaria de Estado, mas podia ser inclusive a empreiteira. O nosso diagnóstico não seria diferente. A gente só pode trabalhar com imparcialidade. No momento em que ela for afetada, não existe parceiro. Então, a imparcialidade, a competência, nunca desaparecerá. Portanto, nós não estamos falando de privatização. Esses parceiros vão ajudar nos nossos desenvolvimentos, a entrar em áreas, às vezes, em que nós não estávamos. Inteligência artificial é uma em que a gente já estava, por sinal, mas em outras áreas, graças a esses parceiros, a gente entrou, por exemplo, na cibersegurança. Foi a Lenovo, uma empresa chinesa, que no IPT Open trouxe a ideia. Nós estamos fazendo cursos de cibersegurança, não é para a Lenovo, é para empresas, para parceiros, para pessoas independentes. É um ganha-ganha para a formação de recursos humanos. A Lenovo trouxe um projeto que é o armazenamento de dados usando DNA, e não mais o binário zero e um. Com isso, a gente vai economizar no futuro, [será menor] dispêndio energético e de espaço físico. Hoje, usa muita energia para armazenar dados em nuvem, precisa reduzir. Graças à Lenovo, nós conseguimos fazer, em parceria com a bionanotecnologia e o nosso pessoal de tecnologias digitais, esse projeto que chama Prometheus, que [permitirá] no futuro armazenar dados em pequenos chips, em vez de estar numa sala. Ou seja, essa responsabilidade não pode ser deixada de lado. Esta é uma responsabilidade que tem que estar não só nas lideranças, mas na cabeça de todos do IPT. Hoje somos uma família de mais de 1.100 colaboradores. Existem aqueles que são concursados, os que vêm pela fundação do IPT e os terceirizados. A gente está acelerando startups graças ao IPT Open, com uma parceria com o Sebrae [Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas}; já aceleramos, desde 2022, mais de 100 startups. Então, veja que se aceleram os processos, é isso que a gente quer, mas sempre com controle, entendendo o que está sendo feito. Então eu espero que essas minhas palavras ajudem a desmistificar para algumas pessoas que acham que a gente está vendendo o IPT. Não é nada disso, não é real estate que a gente está fazendo, [mas sim] pesquisa, desenvolvimento e inovação.
Na sua avaliação, a partir do trabalho do IPT, qual o cenário do País em termos de ciência e tecnologia, pesquisa e desenvolvimento?
O IPT foi uma das entidades que mais trabalhou no pré-sal, em várias vertentes, então ajudou muito, e continua trabalhando para a Petrobras, em várias outras questões. A Petrobras é uma empresa pública, mas a gente trabalha para outras empresas de óleo e gás, muitas vezes em parceria umas com as outras. A gente acabou de assinar um acordo que é Shell e Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo], com recursos de ambas, junto com USP e IPT, para plataformas offshore, voltado à transição energética, como diminuir o problema das emissões, um projeto amplo. A gente precisa de combustíveis, mas como substituir combustível fóssil? A gente não vai deixar de extrair petróleo por um bom tempo, então o negócio é diminuir emissões na extração, é um uso mais inteligente. A gente tem entrado em projetos cada vez mais complexos, porque o mundo está muito complexo, não quer dizer que a gente não faça prestação de serviço, homologação, acreditação etc., mas pesquisa e desenvolvimento, muitos projetos a gente faz internamente. Três quartos do P&D hoje são privados e um quarto vem de órgãos de fomento ou recursos públicos. A gente precisa unir competências diferentes e complementares. Outro projeto, também com a USP, é o do xenotransplante [que visa dar] esse salto de qualidade de conseguir órgãos para transplantar. A fila é imensa, tem muita gente morrendo porque não chega a sua vez. No mundo, há a questão de [uso de] órgãos de suínos, porque são os mais próximos do ser humano, mudados do ponto de vista genético para que não haja rejeição. Isso é uma parte que a USP sabe fazer muito bem, a alteração genética, e nós vamos desenvolver a tecnologia e protocolos para ter o órgão e levar para transplante. Nós estamos desenvolvendo junto com parceiros [meios para que] a cana não seja plantada com mudas, mas com semente. Mas por que isso? Porque a gente tem uma área reservada para fazer as mudinhas de cana enorme numa propriedade. Se você tiver tudo com semente, numa mesma área tem muito mais cana, muito mais etanol, portanto, você evita desmatamento. E você pode fazer o etanol de segunda geração, que é tirar dos resíduos que sobram do processo novamente etanol. Ou seja, tem todo um ciclo muito mais inteligente. E o etanol é um grande negócio brasileiro. A emissão de um carro a etanol é muito menor do que um a gasolina. A engenharia, a geologia, a física, nós estamos tendo que nos reinventar para poder apoiar toda a evolução. Dentro do aspecto ainda das mudanças climáticas, o IPT agora é parceiro da Universidade Estadual do Amazonas (UEA), no Centro de Bionegócios da Amazônia. Vai fazer um ano que a gente está lá, fazendo desenvolvimento para a Amazônia, para todas essas questões de biotecnologia. Ou seja, dar base de sustentação para a população que está lá de maneira que não se derrube a floresta, mas que a gente faça daquilo um bom negócio. Não só pelo planeta, ou porque aqui em São Paulo a gente está sofrendo a seca porque houve desmatamento na Amazônia – e isso está comprovado –, mas também pensar nas pessoas que estão pisando naquela terra. Elas precisam de sobrevivência honesta, viver da floresta de uma maneira sustentável.
Diante de tantos desafios, como ter mais mulheres na engenharia, até para que essa parcela da população também possa dar a sua contribuição de forma qualificada?
Essa é uma questão muito importante que me é muito cara. A questão da equidade de gênero nas engenharias é uma batalha muito grande nossa. As mulheres precisam, sobretudo, ter a liberdade de escolha. Se ela tem um talento para a área, por que não? Então, a gente não está dizendo que tem que ter 50% de mulheres, pode ser que o equilíbrio esteja em 40%, pode ser que seja 60%, eu não sei, mas as pessoas precisam ter a liberdade de escolher, não ser [excluídas pelo] preconceito, seja familiar, das escolas, do ensino básico (ao dizer que matemática é difícil, por exemplo). Esses preconceitos atrapalham a carreira das mulheres. Muitas vezes a família quer proteger a filha porque acha que ela vai estar exposta ao preconceito, que vai ser uma carreira difícil para ela e a desincentiva. A segunda questão é que [em ambientes com] pessoas com pensamentos diversos é onde a gente tem os melhores equilíbrios e os melhores resultados. Isso não é uma ideia, está comprovado cientificamente. Então qual é o papel das mulheres com mais experiência, como eu? Eu acho que a gente tem um papel importante que é inspirar. Você citou a questão de eu ter sido a primeira diretora mulher. As mulheres ficaram tão empolgadas, elas me cumprimentavam de uma forma tão carinhosa e com tanta esperança no olhar, que ali eu entendi, na minha posse, que tinha um papel a mais, que era responder para aquelas mulheres. A ideia de achar que mulher compete com mulher é uma besteira total, tem a sororidade, que é importante. Não é representação, porque todas podem ser. Eu acredito em inspirar as outras para que elas cheguem lá ou acima. Um exemplo: em um dos anos, durante os quatro da minha diretoria, entre os 11 centrinhos (Atlética, Grêmio etc.) existentes na Poli, dez eram presididos por alunas. Isso é uma alegria para mim, ou seja, elas viram que é possível. E, se é possível estar no centrinho, é possível estar em uma empresa, abrir seu próprio negócio, liderar uma equipe. Tem pessoas que não querem fazer isso, não tem problema. Mas aquelas que querem precisam desse espaço garantido, porque a competência não depende do gênero. Competência é competência. Talento é talento. Estudo é estudo. Então, a minha batalha é em cima disso, que as mulheres tenham o seu espaço, sem preconceitos, sejam respeitadas e possam demonstrar o seu talento e a sua competência. Esse é o meu sonho.
Assista ao vídeo da entrevista