Rita Casaro
Diretora eleita da Poli/USP, Anna Reali será segunda mulher à frente da instituição em 132 anos. Foto: ReproduçãoEleita em 29 de outubro último, a professora Anna Reli será a próxima diretora da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli/USP) para o período 2026-2029, com o mandato iniciando-se oficialmente em 24 de dezembro. Única na disputa que contou com quatro chapas e oito concorrentes entre diretores e vices, ela se torna a segunda mulher a ocupar o posto nos 132 anos da instituição. “A gente está vendo que estão ocupando mais espaços, e a sociedade está gostando, querendo e incentivando. Espero honrar a confiança depositada pela comunidade politécnica na nossa chapa”, celebra.
Entre os planos para a gestão à frente da Poli, ela destaca o desafio de “atrair e reter talentos com currículos modernos, ambientes acolhedores, mentoria, com pertencimento e oportunidades de pré-mestrado, desenvolvimento, empreendedorismo e projetos com financiamento adequado”. Nesse contexto, um eixo central, afirma ela, é “a formação que transforma”: “Continuar desenvolvendo pesquisas que tenham impacto real no mundo em que a gente vive, com uma cultura e uma extensão que sejam voltadas à sociedade”, propõe.
Professora titular do Departamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais (PCS), Reali tem e mais de 35 anos de carreira com atuação em inteligência artificial e robótica autônoma. Pioneira nesse campo, organizou a 1ª Copa Brasil de Futebol de Robôs na Poli, em 1997, e foi coordenadora do time vice-campeão mundial da RoboCup de 1998, em Paris. Nesta entrevista ao Jornal do Engenheiro, Reali defende que o País invista na área que está no centro da economia global. “O Brasil é um grande produtor de energia e no agronegócio, tem um Sistema Único de Saúde que é fundamental, e a inteligência artificial norteia todas essas áreas, é transversal a todos os desenvolvimentos. Não precisa necessariamente competir com a Google, pode usar a inteligência artificial”, pondera.
Nesse contexto, a professora que tem doutorado em Engenharia Elétrica pela USP, com graduação e mestrado na mesma área pela Fundação Educacional Inaciana (FEI), além de pós-doutorado pela Carnegie Mellon University, dos Estados Unidos, lembra a importância de se garantir contrapartidas ao negociar com as grandes empresas digitais que queiram se instalar no Brasil. “Saber negociar muito bem para não fornecer nossos dados e nossa energia a troco de nada”, enfatiza.
Confira a seguir e no vídeo ao final.
Qual o significado de vencer essa eleição para a direção da Escola Politécnica?
Vencer essa eleição tem sido uma oportunidade enorme para conduzir com coragem, humildade e determinação esse compromisso que a gente tem de liderar as transformações tecnológicas, sociais e ambientais na nossa escola. Também foi muito relevante ter sido a segunda mulher em 132 anos a ser eleita como diretora da Escola Politécnica. Eu vejo uma transformação, na USP, por exemplo. Na Faculdade de Direito, é a segunda mulher também eleita diretora agora, em 200 anos da escola. Na Faculdade de Medicina, a gente tem uma diretora. A Esalq tem a primeira diretora mulher. Então, a gente está vendo que as mulheres estão ocupando mais espaços, e a sociedade está gostando, querendo e incentivando. Nós tivemos quatro chapas disputando, e eu fui a única mulher desses oito, entre diretores e vice-diretores, a concorrer. Espero honrar a confiança depositada pela comunidade politécnica na nossa chapa.
Quais são os planos para o trabalho à frente da Poli e como está incluída essa meta de buscar a equidade de gênero na engenharia?
Nosso plano de gestão focou basicamente em seis eixos fundamentais. Um deles é a formação que transforma, tanto na graduação quanto na pós-graduação. A gente quer realmente continuar desenvolvendo pesquisas que tenham impacto real no mundo em que a gente vive, com uma cultura e uma extensão que sejam voltadas à sociedade. A USP foi criada na década de 1930, e a Escola Politécnica veio para esse campus na década de 1960, então a infraestrutura precisa ser renovada. Também, [fazer] uma gestão participativa e bastante articulada e transparente. E, acima de tudo, o eixo que norteia todos os demais, a valorização humana focando em três grandes objetivos. O primeiro é atrair e reter talentos (não só alunos, como docentes, servidores técnicos administrativos e os egressos também) com currículos modernos, ambientes acolhedores, mentoria, tarefa em que os egressos podem auxiliar bastante, com pertencimento e oportunidades de pré-mestrado, desenvolvimento, empreendedorismo e projetos com financiamento adequado. O segundo grande objetivo é realmente garantir uma gestão transparente e eficiente, com diálogo constante com toda a comunidade politécnica. E renovar a nossa infraestrutura. Os prédios, como eu já disse, foram construídos na década de 1970, 1960 e carecem de renovação mais profunda e de expansão. Antes o número de ingressantes eram bem menor, agora está em 870, e a infraestrutura não se expandiu para receber todos esses alunos.
A senhora mencionou, entre esses objetivos estratégicos, atrair e reter talentos. O ensino de engenharia vive um cenário desafiador no País, com queda nas matrículas e grande evasão. Como a senhora vê esse quadro e como pretende enfrentar essa questão?
A queda de interesse em STEM, em inglês, ciência, tecnologia, engenharia e matemática, que a gente fala CTEM agora em português, é um problema mundial; há falta de atratividade para as meninas em especial. E há uma falta de engenheiros mundialmente também, mas especialmente no Brasil. Dos formandos no País, menos de 10% são engenheiros, enquanto na China, que está tendo uma evolução bastante grande, ultrapassam 30%; e a média mundial é mais de 20%. Então, o Brasil precisa recuperar esse espaço, sair um pouco só da formação de humanas e administração e se voltar um pouco mais para a engenharia, porque eu acredito que, para enfrentar as transformações que estão ocorrendo no nosso planeta e para desenvolver um país, a gente precisa de mais engenheiros. Então, não é só a Poli, toda a engenharia no Brasil inteiro sofreu uma queda bastante grande. A gente visa contornar essas dificuldades, reforçando e incentivando algumas iniciativas como, por exemplo, atualização de currículo, com foco em desafios tecnológicos e sociais. Muitos programas de engenharia estão sendo reformulados, e aqui na Poli também, para que sejam mais centrados em problemas reais, como sustentabilidade, cidades inteligentes, digitalização, inovação. Isso torna o curso mais relevante e motivador para os estudantes. Outra [carência] que a gente tem são iniciativas de divulgação e engajamento precoces, não é só no ensino médio, mas já no ensino fundamental, porque a gente vê as nossas crianças achando que engenharia é uma coisa difícil, demora muito tempo para se formar, e não veem as dimensões que a profissão pode ocupar. É fundamental que se divulgue em diversas instâncias para mostrar como o curso de engenharia realmente pode proporcionar carreiras interessantes, com impacto social, com inovação, com internacionalização. Então, reforçar e promover esse contato, especialmente focando em grupos sub-representados, como de mulheres, pode aumentar bastante o interesse. Na Olimpíada Brasileira de Robótica, a gente vê que, no ensino fundamental, tem várias meninas participando, tem times só de meninas muitas vezes, enquanto no ensino médio já não tem mais. Então, a gente tem que ver esses preconceitos que estão embutidos na sociedade, como pode lidar com isso, e eu acredito que uma diretora mulher de uma escola de engenharia, uma engenheira eletricista formada, traz um modelo para mostrar que é uma carreira possível, que não é coisa só de homem, mas também de mulheres.
Que outras ações estão previstas?
Também a melhoria da diversidade, da inclusão e do pertencimento. Com isso a USP tem lidado bastante; na última gestão foi criada pioneiramente uma pró-reitoria de Inclusão e Pertencimento. Outro aspecto, que também foi testado nessa gestão, é a flexibilidade e formatos diversos para ingresso na universidade. Então, a gente tinha a Fuvest, depois entramos no Enem, aí tem provão paulista, tem ingresso por vencedores de Olimpíadas, as cotas e tudo mais, tem diversas formas de ingressos que podem promover a diversidade no nosso público. E eu acho fundamental dentro da área de engenharia ter parcerias com indústrias, estágios, experiências práticas e trazer para a sala de aula problemas reais, para que os alunos possam desenvolver o conhecimento, já aplicando e vendo utilidade. Porque senão fica muito abstrato, vão entrar no curso de engenharia, tem Física 1, 2, 3, 4; Cálculo 1, 2, 3, 4... Para que serve isso? A gente pode mostrar, logo no começo, com essa troca com a indústria, com as empresas, com o mercado em geral.
Esses desafios tecnológicos em sala de aula e o intercâmbio com o mercado podem promover efetivamente a contribuição da Poli para o desenvolvimento e para a solução de problemas da sociedade brasileira? Nesse sentido, como o enfrentamento da crise climática entra na agenda dos cursos de engenharia.
A engenharia sempre foi voltada a resolver problemas, então a boa engenharia dá boas soluções para a sociedade. A engenharia ética e responsável, com cunho social e ambiental, é hoje um ponto que está norteando todas as pesquisas e os desenvolvimentos. E a gente, como formador de futuros engenheiros, procura incutir isso logo cedo, essa responsabilidade e essa observação com relação à sociedade, à ética e ao ambiente. Então, a Poli já se aproximava bastante da sociedade com várias transferências de conhecimento e tecnologia que são desenvolvidas aqui em suas pesquisas. O que a gente quer é incentivar ainda mais por meio de uma política ativa e mostrar para a sociedade, junto com a nossa área de cultura e extensão e comunicação, [o que é feito] e, às vezes, não é conhecido nem mesmo dentro da USP e da Poli.
A senhora é de uma área que hoje está no centro da economia global. Quais as perspectivas para o Brasil na transformação digital em geral e nos campos de inteligência artificial e robótica?
O Brasil produzia bastante, estava em 12º [entre os países] da OCDE em produção de conhecimento nessa área de inteligência artificial, especificamente. Caiu um pouquinho, então, precisa de política do País. Isso foi feito com o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, precisa agora realmente executar, pôr em ação, e o governo tem tentado fazer isso aproximando a universidade das necessidades [nacionais]. O Brasil é um grande produtor de energia e no agronegócio, tem um Sistema Único de Saúde que é fundamental, e a inteligência artificial norteia todas essas áreas, é transversal a todos os desenvolvimentos. Não precisa necessariamente o Brasil competir com a Google, pode usar a inteligência artificial deles no agronegócio, na saúde. A USP é muito poderosa dentro da inteligência artificial e a Escola Politécnica, em especial, tem uma representatividade bastante grande. Em todas as 17 ênfases de engenharia que a Poli oferece, que são coordenadas por 15 departamentos, os mais de 400 docentes, 5 mil alunos de graduação, 1.500 alunos de pós-graduação, todos eles têm uma formação mínima dentro dessa área de inteligência artificial e ciência de dados, porque está sendo uma solicitação, não só dos alunos, como expectativa de aprendizado, mas
também da sociedade, do mercado e tudo mais. Então, a Poli tem a coordenação do Centro de Inteligência Artificial e Aprendizado de Máquina, que é um centro OCEAN, construído pela USP, para ser um hub de inteligência artificial. Tem a coordenação do Center for Artificial Intelligence, que é o CIFOR-AI, que é um convênio da USP com a Fapesp e com a IBM do Brasil. Tem a coordenação do Centro de Ciência de Dados, que é uma parceria com o Banco Itaú Unibanco. Tem a coordenação do RCGI, um centro de pesquisa e inovação de gases de efeito estufa. A gente tem parcerias há mais de 70 anos com a Marinha [para o estudo da] dinâmica oceânica, e tem muita inteligência artificial voltada a isso, para prever, por exemplo, ressacas em Santos. O oceano é fundamental para o clima e isso é uma tecnologia e um conhecimento que a Poli tem há bastante tempo, com as suas parcerias com a Petrobras, com a Marinha, com a Shell, com a Total. A gente tem agora a coordenação também do OTIC, que é Offshore Technology Innovation Center, que está querendo fazer a transição da indústria offshore de extração de petróleo para um futuro mais sustentável e tecnologicamente avançado. A inteligência artificial está norteando tudo isso também junto com as outras engenharias. Então, eu acho que é uma área fundamental em que o Brasil tem que investir. A gente tem também um centro de pesquisa aplicado, que é uma parceria com a Claro e com a Fapesp, que é para transformação digital, que tem tecnologias relacionadas a 5G, para projetos verticais de cidades inteligentes, Indústria 4.0 e agrotec, que são pontos fundamentais para o desenvolvimento do Brasil. Então, o que precisa ter é continuidade no desenvolvimento, no fomento dessas pesquisas e, a Poli agora está bem focada nisso, transferir adequadamente essa tecnologia para a sociedade. Daí, é importante ter esse vínculo da academia com intermediários, os empreendedores, startups, que fazem [a conexão] com as grandes indústrias para as quais vão trazer inovação. É isso que o Brasil precisa: ter uma linha clara e perene de fomento para que essa transferência ocorra com sucesso.
Está em curso a discussão sobre a instalação de data centers das big techs no Brasil, o que é uma proposta defendida pelo governo, mas que tem recebido alertas de especialistas sobre a importância de se assegurarem contrapartidas pelas empresas. Além disso, há preocupação com o alto consumo energético e hídrico dessas instalações. Qual a sua opinião?
Eu concordo com os especialistas que falam que tem que ser com cautela, com atenção, mas minha avaliação é que a gente tem potencialidade para isso, sim. Hoje, nós estamos numa sociedade voltada para dados e informação, a gente tem que reter esses dados, os nossos dados do SUS são um absurdo e a gente tem que saber aproveitar bem isso, saber negociar, para que a gente não seja simplesmente um fornecedor de energia, de solo e de água para as big techs. Eu acredito que o Brasil tem tudo na mão e tem bons negociadores que podem defender muito bem [os nossos interesses], sem ser tão imediatista. O Brasil tem um pouco de dificuldade em pensar mais em longo prazo, mas eu acredito ser fundamental não pensar no retorno imediato, mas sim em qual o maior retorno que pode ter num espectro um pouquinho maior. E saber negociar muito bem para não fornecer nossos dados e nossa energia a troco de nada. Eu sou favorável a isso, desde que seja bem negociado. Então, essa é a minha opinião. Eu acredito que a maioria dos meus colegas são dessa opinião também. Não dar de mão beijada as coisas sem valor agregado. Nós temos que conseguir deixar de ser meros fornecedores de matéria-prima e ter mais valor agregado que retorne para a nossa sociedade, para a nossa população, para o nosso país.






